segunda-feira, 13 de junho de 2011

O juiz, o ladrão e o vira-latas

"Lear: Como, estás louco? Mesmo sem olhos um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê  como aquele juiz ofende aquele humilde ladrão. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o ladrão? Já viste um cão da roça ladrar prum miserável?
Gloucester: Já, meu senhor.
Lear: E o pobre-diabo correr do vira-latas? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. Oficial velhaco, suspende tua mão ensangüentada! Por que chicoteias essas prostitutas? Desnuda tuas próprias costas. Pois ardes de desejo de cometer com ela o ato pelo qual a chicoteias. O usurário enforca o devedor. Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem esconder o menor vício; mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo. Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém – digo, ninguém! Eu me responsabilizo. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês."  SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. L&PM Editora. p. 172

Sei que as palavras do Bardo compõem Beleza a partir da Verdade. Conheço poucos juízes, e muitos vira-latas, e a tentação de virar eu própria as latas da vida emerge, neste mundo em que ter um cargo qualquer é confundir-se com possuir a Verdade, essa musa caprichosa que é mais difícil de expor que de  elaborar. Se a temos, sem coragem, corremos o risco de levá-la conosco para o túmulo. Se a calamos, não seremos mais que vira-latas, sofrendo o mal do Juiz - esse simbólico vira-latas travestido de toga como outros travestem-se de beca, graus, títulos e etc. Raras são as ocasiões em que, talvez cansado por submeter-se, talvez revoltado por ter sido sempre fiel guarda-costas de um amo despótico; raras vezes, nesses ciclos kafkianos da vida moderna, a Verdade aparece, mas não para martelar a cabeça do juiz (esta, protegida por sua própria obtusidade, seu caráter vão, seus procedimentos cuidadosamente escolhidos), e sim a do ladrão - o bode expiatório que não é nem juiz, nem vira-latas. E aí, exposta e oculta detrás do manto dos Príncipes, a Verdade já terá sido completamente corroída de seu valor: ela é só opressão e nada mais. 
    O juiz é o burocrata da vida, como o médico é o burocrata da morte, parece ter dito Tolstói em seu magnífico "A morte de Ivan Ilitch". Ambos, administradores de processos incontroláveis de estupidificação dos subordinados. A fala nervosa de Lear é a do rei destronado, sem-teto, que abandonou, por amor e vaidade, suas pilhas de ouro em prol dos falsos afagos das filhas. Estas, abarrotadas de dinheiro e opressão, voltaram-lhe as costas assim como a um vira-latas sem cargo, ou ex-juiz despido de suas fragorosas vestes, nu e pobre sem finos mantos que escondessem sua fragilidade e sua demência. Shakespeare protesta: os homens de togas e mantos de púrpura esquivam-se do julgamento, escondendo tudo, escondendo mesmo sua pena pelo ladrão, sua simpatia pelo vira-latas, esse felizardo que não tem de se importar com as pompas do Juizado e pode correr por aí, ao relento que seja, sem olhar o dia, a hora, ou o ponto a bater. Pena que Lear tenha se dilacerado pela traição de suas filhas! Pena que o remorso por sua própria injustiça com Cordélia impediu-o de usufruir da irresponsabilidade própria da loucura, lançando-o nas garras das estrelas. Essas não tem tempo, demência nem angústia. Dispostas num espaço no qual não há remorso nem culpa, contemplam, com seus complacentes olhos brilhantes, a infinita pequenez humana. Eu ainda me destrono. 

"King Lear and a Fool in the Storm". Artista: Sir John Gilbert



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