sábado, 19 de abril de 2025

Loucura derretida. Episódio 4: There´s a big, a big hard sun...

"O Sol, o Sol", balbucia Edward, o filho único de Ms. Alving, ao perder para sempre a sanidade nas nuvens da demência... Assim termina "Espectros", de Ibsen, uma das minhas peças favoritas.
Origem última da vida (combinado com a generosa água que sob ele se agita, como Gaia sob Crono), lá estava Ele, ocupando sem cerimônia nosso quartinho à beira-mar. Nossas delgadas cortinas não foram páreo para aquela imensidão de amarelo e azul. Aqui, no hemisfério sul, a Aurora faz seu passeio pelo céu estendendo dedos que não são róseos, mas sim dourados. Estamos na cidade de Marechal Deodoro, pertinho de Maceió. O sol já nos prepara para a plenitude equatorial de sua existência potiguar, como que nos encorajando a pegar o trecho final de nossa viagem.... "Venham, estou à espera...".
Edward Alving despedia-se do Sol; nós viemos ao seu encontro, e tudo que lamento é não estar de férias para poder caminhar sem pressa sob o esplendor de seus raios que ameaçam queimar minha pele branquicenta. Um anticlímax, por assim dizer: sedutor e mortal.
A Aurora, linda e pujante como eu nunca vi, nos apresenta ao Sol que nos guiará pelo resto do dia, acompanhando a estrada curva - na horizontal e na vertical (sim, na vertical. A BR-101 é repleta de lombadas-surpresa).
Perturbam-me as casinhas à beira da estrada pintadas só na parede frontal, enquanto as outras paredes permanecem com os tijolos à vista. "Não faz sentido", digo, tentando convencer o Edu, que não se incomoda nem tem opinião, "se alguém tem dinheiro para comprar tinta, por que não comprar o reboco antes?".
Mas outro detalhe me chama atenção: as casas nunca têm a mesma cor. Pintar a parede da frente deve ser um modo de identificar onde mora cada família. Aliviada com a engenhosidade (e não a aparente burrice) do povo brasileiro, vamos passando por placas que indicam icônicos lugares (Praia do Francês, Porto de Galinhas), promessas de deliciosas viagens. Isso, é claro, se fosse eu outra pessoa, se estivesse de férias e/ou se recebesse visitas. Às vezes é um ato de Amor Fati imaginar sua vida se você não fosse você mesma.
Neste trecho final, eu me imagino Alexander Supertramp - não rumo à sua morte nos confins do Alasca, mas sim cortando as planícies desérticas na costa californiana, todo tostado sobre um big, Big Hard Sun. Esse jovem extraordinário não temia queimaduras solares... Seja como for, é ouvindo a trilha sonora de Into the Wild, de Eddie Vedder, que chegamos a Natal.
Penso: aqui estou eu, Astro Rei, e mesmo não sendo Alexander Supertramp; sendo mais apegada a esta maravilhosa brisa natalense do que aos vossos raios potentes e perigosos, te admiro aqui da minha sacada, enquanto sigo frente ao computador, fazendo as mesmas coisas de sempre... No fim dessa jornada, minha loucura derretida e domesticada vislumbra Alving e Supertramp enquanto, desfazendo e refazendo as malas, tento imaginar no que Natal será igual, ou diferente, de tantos lugares nos quais já morei.





Fotos de Marechal Deodoro, AL


quinta-feira, 10 de abril de 2025

Loucura derretida. Episódio 3: a velhinha e o Google

Desde os tempos de Jesus, o terceiro dia é o que paga a pena. A tensa atenção inicial, por andarmos em estradas completamente desconhecidas, tornou-se a norma, o hábito relaxado (tanto quanto me é possível...), o convite a olhar em torno a nós no trecho Aracaju-Maceió. O Maps, nosso apego seguro nessa longa jornada, afinal errou, e por graça da Fortuna, foi na linda rodovia AL-101 (que escolhemos por ser linda, mas não rápida). Ela interrompeu-se abruptamente em um rio, e foi com surpresa que descobrimos ser o São Francisco em pessoa.
Em água, no caso.
Assim nos traía a longa estrada de estonteantes curvas, um alívio bem-vindo com relação à mesmice do dia 2. Escolada em realismo pessimista, imaginei que a balsa de Penedo tardaria; que teríamos de passar a noite no vilarejo; e a procissão fluvial do Bom Jesus duraria horas, castigando meus ouvidos com a infernal combinação de religião e música alta. Mas mesmo ali, onde se vem ainda muitos peões a 🐴 , o tempo já não é propriamente o das carroças... Mesmo ali, onde os velhos passam a tarde sentados na calçada (como que especialmente situados para informar aos viajantes perdidos onde era o cais da balsa), nas estreitas e coloniais ruas em que mal passa um carro, é fácil cruzar o rio com uma balsa motorizada.
Gostaria de dizer que o Google não açambarcou esse povoado de outros tempos, mas, uma vez que a velhinha corrigiu nossa rota, o app nos levou até lá sem maiores dificuldades :(...
Não sei como há quem consiga ser romântico nesse mundo de controle 24/7... Dá saudade de seguir o dedo indicador de alguém ao invés da setinhas eletrônicas? Meu self tecnofobico não gosta de máquinas, mas, sem elas, não estaría ali mirando a bonita paisagem, nem perguntando pra gente.
Não sei o quanto de afeto se perdeu com o mapeamento do mundo, nem o quanto de tempo se ganhou com a assombrosa eficiência nos trajetos. Tempo para maratonar séries? Pergunto-me, e as vivências já não me entregam respostas fáceis.
Certamente, não amo a voz monótona do GPS que nos guiava em uma viagem quase sem surpresas em meio a caminhos totalmente desconhecidos. Mas desconhecer o caminho e estar perdido são duas situações totalmente distintas.
Ponto para quem nos vê sobretudo como entidades em busca de evitar o sofrimento - ainda que os prazeres ganhos sejam muito mais fugazes do que o de avistar amáveis velhinhas na calçada.
Esse foi o dia de interações inesperadas: também com o professor do instituto Federal de Brasília que viajava de férias com seu filho; e com alguns jovens com quem compartilhamos a deslumbrante vista do Mirante do Robalo. Queria saber porque esses contatos não duram: ninguém troca contatos como na era pré-Google, nem investe tempo em conhecer os outros; deve ser porque, no pior dos casos, é possível bater papinho com o ChatGPT. Aí, vale o perdão para os que não sabem o que fazem, mas não para os que desistem de saber...



































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