segunda-feira, 30 de maio de 2011

O círculo perfeito

Anos atrás, fui atraída para um comentário de Deleuze, citando fala de Scott Fitzgerald sobre o casamento dele com Zelda: "Eu amei a loucura em seus olhos. Ela amou a bebida em meus lábios".

Essa frase me desorganizou o sistema. O amor não são só as cantigas de ninar das mães, as valsas repletas de pudores angelicais, o eufemismo para as passagens de sedução que tanto amamos em Kundera?

Mas eram assim os votos matrimoniais dos jovens Fitzgerald. Os defeitos-virtudes sociais do escritor e de sua mulher formavam um círculo perfeito; diferente, talvez, do amor convencional que contém certa dose de recolhimento, o deles era um amor público a virtudes, na sua maioria, vazias (inteligência, talento, beleza, impetuosidade). O "justo meio", procuraria Aristóteles! Esse preceito pode ser difícil de atingir onde a vida pública gira em torno de seu próprio eixo, como uma enceradeira rangente e monótona, pronta a ser descartada quando um taco velho começa a se descolar. E descolou.

Scott e Zelda amaram bebida e loucura também quando espelhadas nos olhos dos seus admiradores. Scott, mais autocrítico, sofreu da vergonha de adivinhar a futilidade - mas, incapaz de conter a fúria exibicionista de Zelda, fiel escudeiro dessa poetisa prática, usufruiu de suas virtudes-defeitos como prisões sociais de estadia temporária, estações na direção do esquecimento.

Juntos, transcendiam qualquer espírito pragmático (como quem não precisasse da vida prática, vida comezinha e pobretona à qual Zelda jamais se ajustou), o horror ou a vergonha, a beleza de ambos potencializando os seus atos bizarros, eles vingaram-se do convencionalismo criando excessos impossíveis de superar, mas também, vazios de sentido, de devir ou de beleza própria. E acabaram, bem, como sinônimos de um tempo de vazio e abundância, não sei se devia ser assim.

Zelda queria era superar a própria beleza com um valor novo: ela mesma. Mas ela não duraria, e dessa aposta malograda em sua própria grandeza, vai tentando encontrar novos sentidos para a Vida, até estancar os horrores suicidas com - pasmem! - o mais convencional de todos, a religião. Scott era o humilde tradutor do projeto insano da mulher, de sua aventura impossível. 

Não era um pacto de amor sadomasoquista. Talvez fosse uma simbiose, uma fusão completa, uma paixão absolutamente infantil por poderes mais ou menos inofensivos aos outros, Scott e Zelda,  princesa encerrada na torre da loucura; marido em luta inútil para mantê-la a salvo de si mesma. E Scott lamentou-se por deixá-la seguir em seu curso sem volta, participando dos bizarros happenings de Zelda, mulher-bruxa, força natural em seu paganismo meio cômico e meio trágico.  Junto dela até o fim, Fitzgerald foi, sem dúvida, um romântico. Recebeu de presente sucesso e fracasso com o mesmo olhar de pavor e culpa; no seu rosto meio irlandês, sempre o sorriso angelical e infantil. Hemingway, o"amigo"(mais propenso ao julgamento que à compreensão) que tão pouco o ajudou, viu o mundo de Scott dissolver-se em garrafas de uísque, melancolia e dívidas. Faz-nos pensar se apontar a nudez do rei - hábito de todo psicólogo - de fato ajuda-o a se cobrir, ou a tomar partido dessa nudez sem culpa.

E, diz Jeffrey Meyers (in "Scott Fitzgerald: uma biografia"), a rica jovem só queria ser ela própria. Admirando sua intrigante imagem, entendemos o porquê. Perder esse rosto segundo a segundo é necessariamente trágico, pateticamente banal: desperdício e crueldade do tempo combinados com um progressivo encolhimento do espaço social. Talvez eles coubessem mais como antigos ícones da melancolia contemporânea. Um epitáfio cabe-lhes: they had fun!

 
  

domingo, 15 de maio de 2011

A tevê e o meu coraçãozinho (crônica baurulina)

Em Bauru, acabo assistindo televisão enquanto faço companhia aos meus velhos. Costuma doer, mas, até essa Páscoa,  as pontadas nunca haviam se aproximado tanto daquela famosa dor no braço direito, seguida de um túnel de luz com o vulto da sua avó sorrindo para você.
Era dia de Fantástico. Matéria de abertura: mortes nas rodovias, cuja principal causa (somos informados antes de podermos pensar) é a impunidade. Nada a ver com buracos, congestionamentos e afins.
Cenas de certo caminhão batido numa quilométrica fila de carros. Pessoas sangrando (de verdade! Não era molho de tomate!), enquanto um caminhoneiro fugia das câmeras. Não por muito tempo: sua CNH foi habilmente obtida pela reportagem da Globo (corta para um close frontal na foto desse inimigo público). 
Gigi, olha o túnel! Você já não tem 25 anos. Mudei de canal.
Na Record, um programa sobre cachorros. Promessa de alienação inofensiva! Mas eis que começa narrativa sobre a relação entre um homem sem-teto, que há 20 anos teve a mão decepada num acidente de trabalho, e seu fiel cãozinho, juntos durante a coleta de recicláveis. Imaginei a vida desses dois e umas pontadas (imaginárias) voltaram ao meu peito. Voltei para o Fantástico, na esperança de que a reportagem sobre os acidentes tivesse acabado.
E acabara. Exibiam-se cenas de uma câmera de segurança: um bebê recém-nascido era posto numa caçamba de entulho. Em seguida, aparecia um catador de latinhas que, ao se deparar com a criança enjeitada, quase morreu de susto (parecia-se comigo, assistindo à reportagem dos acidentes).
Corta: entrevistas protocolares com o professor e o policial coadjuvantes. Foto da fachada do hospital católico (e chique) no qual a criança se recuperava bem. O policial é a voz da razão: "foi deus!", pois o médico bem-apessoado garantiu que mais uns minutinhos seriam fatais para a menina, já apelidada de "Vitória". 
Se deus apresentou-se, o diabo não fez por menos. A mãe foi devidamente aferrolhada e exibida para as câmeras, com um corpo surpreendentemente magro para o puerpério (Adriane Galisteu e outras ex-grávidas morreriam de inveja). Trazia na cara uma expressão da mais total frieza. Sua desculpa?! Já tinha 6 filhos e trabalhava como cozinheira! Agora, imagino, já não tem filhos, liberdade ou emprego. Após uns 10 anos de cana, poderá rivalizar com o pobre senhor da mão decepada no processo de catação de latinhas, pois o salvador do bebê  está nas graças da opinião pública. Talvez ele vá obter trabalho, mas como a memória televisiva é curta - além do que há alta concorrência de bebês enjeitados em locais pitorescos - também pode ser que continue procurando latinhas e encontrando latinhas.
Perdoem-me a cáustica amargura, mas me surpreende perceber como histórias assim deixem entrever tragédias tão claras, repletas de desigualdade social, omissão do poder público, má fé da imprensa, e o telespectador talvez nada observe. O sentimentalismo é complemento necessário da inanição intelectual. Vilão, mocinho, mocinho mais mocinho, mocinho menos bandido, e acreditamos que o Bolsa Família realmente tornou o Brasil um país justo. Vivemos é numa nação cruel com os pobres, estupidificada e kitsch. E ainda dizem que nossos afetos são naturalmente bons! Que erro! Eles podem ser é cúmplices da nossa subserviência compassiva e virtuosa.
Ainda bem que só volto a assistir televisão em julho. Nesse ritmo, meu coraçãozinho não aguentaria.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Inscrição para uma lareira

A vida é um incêndio: nela 
dançamos, salamandras mágicas 
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida…


Mário Quintana


      Ainda fascinada pelo "The U.S. against John Lennon". Recomendo. E, como toda imaginação (escravizada pelos afetos), associo o poeminha do Quintana à vida intensa do ex-Beatle - que eu sempre creditei como ex-Beatle, e não como um ser singular, dotado de idéias e vontade que pudessem subsistir à sua (meramente relativa) decadência musical. Confesso também que sempre fui adepta do ódio cego a Yoko Ono, a pistoleira, a sem-vergonha-sem-talento-e-caça-níqueis que causou o fim da maior banda de todos os tempos. 
    Mas sou velha o suficiente para reconhecer (alguns de) meus erros. O filme - cuja perspectiva é a da Yoko - e o EduKótchki - meu músico favorito - acabaram me convencendo de que John já estava noutras quando a garota e suas performances malucas (algumas interessantes, outras de gosto duvidoso, mas, enfim, nem toda experimentação dá certo, dá?) conquistaram-lhe o coraçãozinho. 
     John após Beatles cresceu politicamente: uma inspiração para nossos jovens, que jamais viram um  artista pop corajoso o suficiente para abraçar um pacifismo radical. O máximo que vêem é o Bono Vox pagando de filantropo, bem fiel à ordem estabelecida, narcisista a ponto de te dar vontade de cutucar os próprios dentes com uma faca, contar pontos em provas de títulos, ou pior, ler Kant sem anestesia. John não foi um militante de cartilhas: aí é que está a graça. Converteu seu triste destino de menino abandonado pelos pais numa permanente reinvenção de si mesmo, mostrando uma coerência e uma coragem admiráveis (além de usar mui sabiamente os montões de dinheiro que ganhou). Abdicou dessas bobagens fatalistas que há tantos anos oprimem as alternativas da esquerda política, abdicou das mulheres com pinta-de-estrela-de-cinema, abdicou da maior banda do mundo (ou antes, reconheceu seu fim) e, por fim, abdicou de recuar quando perseguido por Nixon e a CIA, e outros caras menos poderosos, mas igualmente infelizes nos seus destinos carimbados e sombrios de promoções e carreiras escusas. 
     Sua chama foi bela e alta, como diria Quintana, também por ter conhecido a alegria e o amor (sem ser brega ou tolo), elevando sua chama johnisíaca até uma gloriosa extinção: 

And in the end
The love you take
Is equal to the love you make (Paul MacCartney, "Abbey Road". The Beatles)



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