Dormiria meio bêbado, debruçado sobre uma resma de poemas incompletos. Desacordado sobre certa explosão em que não trabalhei por inteiro, pois os versos do meu abraço forçaram a porta na hora crepuscular em que pensar e não pensar é o mesmo. Acordando lentamente, pareço um outro olhando pelos meus olhos, esbugalhadas búricas de um gajo introspectivo, a pentear comportadamente o bigode porque os cabelos se escondem debaixo do chapelinho. Meus neurônios seriam fiozinhos assustadiços, mirando Campos e Caeiro a palestrar em seus trajes de bourgeouis e de pastor, até que, lentamente, reconhecessem naqueles gestos o melhor de sua bioelétrica. Tanta felicidade só caberia em um coração de criança! Eu me apagando, lentamente, como no livro de Saramago, aquele em que Ricardo Reis sabe que morrerá, pois Pessoa já se foi.
Se fosse Pessoa, eu teria noivado a jovem Ofélia, e aborrecido ficaria por ouvi-la tratar de vestidos, ou da bursite de tia Zezinha, e planejar filhos. Tal atividade não é para os castos seres que nem mesmo descalçam a botina acompanhados de alguém. Ora, então? Melhores que os filhos sejam talvez os amigos imaginários, pois eles tem vida própria, não nos reviram os bolsos à cata de centavos, nem os pensamentos buscando conselhos impossíveis, torturas quotidianas da carne e do espírito. Pessoa! Ah, se fosse tu, eu desejaria vida social tão intensamente que não toleraria os seres humanos, e com Campos compartilhava o hábito de meio invejar, meio desprezar, a pequena que comia chocolates do outro lado da rua. Não saber comê-los com tanta verdade seria a menor de meus infortúnios, pois meu coração inquieto carregaria toneladas de lírios, lírios e rosas, batendo arrítmico com o ruído do esfregão de Maria, a dona que me limparia o quarto enquanto o desejo de solidão não sobrepujasse o de asseio. Solteirões como eu, amigos da contemplação, lá estariam, imunes ao tempo, palestrando horas com gostosos bolinhos, sem a atividade mais antissocial do aparelho digestório. E, como acadêmicos sem vaidade, perguntar-se-iam se há niilismo em certo versejar de Caeiro: "O único sentido último das coisas/ É elas não terem sentido nenhum", ou se Campos não teria trocado a rapariga inglesa pelo infinito spleen dos paquetes. E eu, se fosse Pessoa, fitá-los-ia com o encanto de quem se sabe modesto artífice, fresh and blood onde se hospedavam aqueles gigantes, mestre anônimo de títeres extraordinários, feitos para e pelo seu único espectador. Eles iriam rodar o mundo, e eu, qual Penélope, ansiaria pelo reencontro, por colher as estórias novas - não, não, novas não! Histórias novas são carreiras, atropelo, o essencial e o secundário estupidamente espremidos na mesma botija; quero as histórias envelhecidas, aquelas que já sentaram praça nas lembranças do contador, que, pudico e abismado, pode narrá-las em versos enigmáticos, como homem maduro a esconder suas vergonhas e substituir por reticências monótonos pontos finais. Pensando bem, imaginá-los palestrar será ainda melhor, pois diante do menor sinal de contrariedade, ou frase mal amarrada, não os veria em vexame, fá-los-ia trocarem cartas, e sobretudo examinarem-se os poemas, que esses podem ser de dúvida ou desespero, sobriedade e lirismo, e viveríamos - Pessoa, Campos e Caeiro - como se fôssemos um, a humanidade nunca-jamais imaginou trio assim tão bom.