quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Notas sobre o Duplo - I

Muitos poetas, cansados de suas peles, lograram sentir-se não só um, mas dois, três, duzentos e cinquenta. Na "Tabacaria", queixa-se Álvaro de Campos: "Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara". 

Envelhecemos naquele preciso instante em que, inequivocamente, percebemos que a potência múltipla - e multiplicadora - da juventude cede espaço a um vácuo: o vácuo de um eu que, iludido, se projetava no futuro contra um eu sem ilusões, disposto a distrair-se com pequenas disputas de mesquinhas vantagens - prêmio de consolação para quem já perdeu um par ou dois de ilusões fundamentais. 

Derrota do primata vivo e mutante que se desdobra com curiosidade sobre o mundo dos sentidos! Massa disforme, pronta a aceitar a Vontade não-livre dos déspotas no lugar de ilusões já mortas!  E, mesmo absorvendo um pouco dessa postura inconfundível do oprimido mergulhado em uma aguda, assombrosa, confusão de figuras do passado com as do presente, o primata luta para produzir possibilidades novas de ação no cansado universo da identidade pessoal e profissional - aquela que nos faz ter nome, idade, profissão, e outras coisas.

Diria Vigotski que nossa personalidade é um agregado de relações sociais internalizadas: pois bem, assim nos desdobramos, entre quem fala e escuta, entre nós e nós mesmos, fatos de consciência que não raramente se opõem e se digladiam - como que dois sistemas, duas sínteses psíquicas, tão possíveis uma como a outra, embora nosso meio social cuide de selecionar esta ou aquela. Luria, acompanhando Zazetsky, viu os nada desprezíveis problemas gerados no mundo estilhaçado do rapaz, que, no entanto, lutou até a morte para preservar a sua consciência de si e a percepção do mundo.

Trombei com o tema do "Duplo" no livro homônimo de Dostoiévski e em conto de Borges; em "The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson; em "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde; em "O Homem Duplicado", de José Saramago. Todos, livros incríveis, desafios de ontem e hoje para uma psicologia da síntese psíquica, que retratam facetas inesperadas desse problema tão fascinante que nos persegue - como bem lembra Saramago - desde quando o primeiro primata olhou-se em um charco e, atônito,  embaraçado, disse: "esse sou eu!". Ou quando o primeiro bebê mamífero, solitário e assustado, deixou-se agitar até que reaparecesse a sua singular e intransferível nutriz: "aqui está ela!", ou seus irmãozinhos, ou colegas de socius, que o seja: acompanha-lhe a própria formação de uma certeza, a certeza de que existimos e somos parecidos, mas jamais idênticos - que há ainda, abandonado no mundo, um nicho no qual possamos dispor a nossa singularidade. E que as semelhanças tornam-se pesadelo quanto mais se aproximam de uma igualdade, a despeito de, no fluxo hegemônico de uma sociedade à qual tanto agrada a linearidade da identidade, ela ser tão desejada. Veja-se o "Doppelgänger": figura mitológica, o duplo de todos nós, arauto não da vida, mas da morte:

Fonte: Wikipedia. Autor: Galiaoffri.


Filosofou Dostoiévski, em carta a Ekaterina Yunga em abril de 1880 (na biografia de Boris Búrsov - “A personalidade de Dostoiévski”): a duplicidade “é o traço mais comum das pessoas... não inteiramente comuns. Um traço que, em linhas gerais, é inerente à natureza humana, mas que nem de longe se encontra em qualquer natureza e menos ainda de forma tão intensa como na sua. Eis por que a senhora me é tão íntima, pois esse desdobramento que há na senhora é exatamente igual ao que há em mim e que sempre houve em toda minha vida. Isto é um grande tormento, mas ao mesmo tempo um grande prazer. É a consciência intensa, a necessidade de que a senhora experimente em sua própria natureza a exigência de um dever moral perante si mesma e a humanidade. Eis o que significa essa duplicidade. Se a senhora não fosse dotada de uma inteligência tão desenvolvida, se fosse limitada e não tão conscienciosa, não haveria tal duplicidade.” (Bezerra, p.238)

[continua no futuro]

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Minha resenha: "Sociedade Tarja Preta: uma crítica à medicalização de crianças e adolescentes"

Oi, pessoal!
Tenho a satisfação de compartilhar com vocês minha mais nova publicação, recém-inserida na SciELO: 

Sociedade Tarja Preta: uma crítica à medicalização de crianças e adolescentes

Black label society: a critique regarding the medicalization of children and adolescents

RESUMO
Como breve análise do livro "Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos", esta resenha contextualiza a importância da publicação na crítica contemporânea à invenção de (psico)patologias e tratamentos a elas destinados. O livro logra, de forma extremamente rigorosa, desconstruir as "bases científicas" que sustentam o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mostrando como a indústria farmacêutica vem ocultando sistematicamente os profundos efeitos colaterais do princípio ativo destinado a tratá-lo (o metilfenidato, presente na Ritalina® e Concerta®). Com textos de profissionais vinculados à saúde e educação, nas mais diferentes áreas do conhecimento, o livro representa uma notável coalizão de esforços em benefício da promoção dos direitos de crianças e adolescentes.
Palavras-chave: medicalização; transtorno de déficit de atenção e hiperatividade; metilfenidato; educação infantil; problemas de aprendizagem

Confira mais clicando aqui

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O arco-íris (mito pré-colombiano)

"Os anões da selva tinham surpreendido Yobuënahuaboshka em uma emboscada e tinham cortado sua cabeça.
Aos tropeços, a cabeça regressou à região dos cashinahua.
Embora tivesse aprendido a saltar e a balançar com graça, ninguém queria uma cabeça sem corpo.
_ Mãe, irmãos meus, vizinhos - se lamentava. - Por que me rejeitam? Por que têm vergonha de mim?
Para acabar com aquela ladainha e livrar-se da cabeça, a mãe lhe propôs que se transformasse em alguma coisa, mas a cabeça se negava a transformar-se no que já existia.
A cabeça pensou, sonhou, inventou. A lua não existia. O arco-íris não existia.
Pediu sete novelos de lã, de todas as cores.
Fez pontaria e lançou os novelos ao céu, um atrás do outro. Os novelos ficaram enganchados além das nuvens. Se desenrolaram os fios, suavemente, para a terra.
Antes de subir, a cabeça advertiu:
_ Quem não me reconhecer, será castigado. Quando me verem lá em cima, digam: "Lá está o alto e belo Yobuënahuaboshka!"
Então traçou sete fios que estavam pendurados e subiu pela corda até o céu.
Nessa noite, um talho branco apareceu pela primeira vez entre as estrelas. Uma moça ergueu os olhos e perguntou, maravilhada: "O que é isso?"
Imediatamente, uma arara vermelha lançou-se sobre ela, deu uma súbita volta e picou-a entre as pernas com seu rabo pontiagudo. A moça sangrou. Desde este momento, as mulheres sangram quando a lua quer.
Na manhã seguinte, resplandeceu no céu a corda de sete cores.
Um homem apontou com o dedo:
_ Olhem, olhem! Que estranho!
Disse isso e caiu.
E essa foi a primeira vez que alguém morreu." (Galeano, Eduardo. "Os nascimentos" (vol 1. da Trilogia "Memória do Fogo"). Porto Alegre, RS: L&PM. pp.30-31). Confiram o Tumblr de Galeano aqui



domingo, 16 de setembro de 2012

Canal de Filmes Brasileiros no Youtube

Confira, canal excelente de Filmes Brasileiros no Youtube
Eduardo Carli (vulgo Kótchki), minha cara-metade, é o responsável pela compilação.

Confiram em:

Recomendo com especial fervor este filme fantástico, embora muito pouco conhecido em nossos dias: Iracema, uma Transa Amazônica (https://www.youtube.com/watch?v=x-PSSJLcHC4&list=PL9CBB5A6C86BEA452&index=3&feature=plpp_video)


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Política pós-absurda - sobre foto da "Mulher-pera"

Passeando no Facebook, fui surpreendida pela foto de campanha eleitoral da denominada "mulher-pera"(esta aqui). 
Pois é, leitor(a). Essa imagem é tão absurda que está além do próprio absurdo  - é pós-absurda. Espantosa e constrangedora, ao misturar as linguagens do marketing e da pornografia, é tão apelativa, que nem chega a ser engraçada. E o pior: mostra seu traseiro para as lutas pelos direitos das mulheres em um momento de ascensão exponencial da violência doméstica/sexual contra elas (nós). 
A imagem acrescenta um capítulo ao vale-tudo para obter o voto popular; especialmente, o voto masculino. Mas, como é próprio das bondages sadomasoquistas, sua "mira" é ao mesmo tempo "alvo": a postura, com as nádegas em primeiro plano, e a cabeça em segundo (quase que rebaixada), alude a certa subserviência animal - além da insinuação de sodomia - para um eleitor promovido a dominador, o chefe. A senhorita Pera deixa-se, docilmente, sodomizar pelo eleitor em geral,  para conquistar todo aquele que se "mobilizar ao voto" (agindo com base no mais irracional dos afetos, e, por isso mesmo, o mais utilizado pela propaganda) com o seu recado. Parece (e apenas parece, pois possuir a imagem do objeto não é possuí-lo efetivamente - a imagem é impostora, pois promete sem dar nada) negar a seletividade própria da sexualidade humana, rebaixando as mulheres à carnalidade que os sacerdotes de todos os templos sempre lhes atribuíram. Como a Geni (de Geni e o Zeppelim): 

Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir:
"Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!" (Chico Buarque)



E há mais. Sendo a sodomia, em nossa cultura, mistura de dor e prazer, tem tudo a ver com o mundo da política pós-absurda. Com seus jingles pegajosos, seus programas eleitorais agradáveis, suas vozes melífluas, todos os demagogos do mundo ficam muito aquém da Mulher-pêra. Se cuidem, Serra, Haddad, Russomano, Paulo Garcia!  Mostrem seus atributos aí, vá! Quem sabe a ficha de cadastro dos candidatos não possa ser um Book?
Vendendo prazer visual, a Mulher-pera tenta trocar sua imagem por elementos  (dinheiro, poder político)  completamente alheios à sua mensagem,  transmitindo a ideia - involuntariamente sábia - de que a política é zona de prostituição voluntária, na qual as mulheres também podem guerrear com suas armas primatas (pós-siliconadas); na qual as únicas ideias são as do marketing, e no qual a maioria esmagadora dos políticos fingem-se submissos ao mostrar-nos sua "contribuição" - enquanto, de fato, mostram-nos o mesmo que a senhorita Pera, a dar lições de marketing que põem Machiavel, seus fins e seus meios nos chinelos, senão em biquínis.  
Era para isso o que queríamos ao ver as mulheres no âmbito da esfera pública? É essa a esfera pública que, sujeitos de moralidade (pelo menos) mediana, nós merecemos? Até quando o povo vai sofrer a ressaca do petismo?!

Volta às aulas

Caros alunos, o reinício das aulas do 1º semestre de 2012 no Campus Goiânia e no Campus Cidade de Goiás será no dia 11/09/2012 (terça-feira).Retomaremos a apresentação dos seminários pela ordem (tanto no curso de Ciências Biológicas e Psicologia). Abraço a todos e meus agradecimentos ao apoio de todos vocês, alunos, à luta pela Universidade Pública ao longo das gerações. Permaneçamos mobilizados e nos organizando para enfrentar os tempos sombrios que aí correm!Aproveito a oportunidade para recomendar-lhes um grande filme nessa temática: "A Greve", gratuitamente neste link.




sábado, 1 de setembro de 2012

Nudez relativa


Desconsolada, a Lua
cobre as vergonhas
da Via adolescente.
(inutilmente).

Nu feito ovo
No Paço do louco
O velhote ensaia
A dança da pipoca
Deiscente.

Até no trottoir
É invasivo o olhar
Do burguês vestido
à cansada proletária
a se abaixar, vencida.

O filho grita
A mãe agita
A nudez disforme.
Da bocarra humilde
Brota o feto
Florescido
do vagido
destemido.

Toalha crespa
Linho alvo
Pente velho
Missa herética.

Saia acima, calça abaixo,
calça abaixo, calça abaixo
Saia acima, saia acima
Matrizes nuas
Conspiram
Sem produto.

 (29/07/2012)

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