Muitos poetas, cansados de suas peles, lograram sentir-se não só um, mas dois, três, duzentos e cinquenta. Na "Tabacaria", queixa-se Álvaro de Campos: "Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara".
Envelhecemos naquele preciso instante em que, inequivocamente, percebemos que a potência múltipla - e multiplicadora - da juventude cede espaço a um vácuo: o vácuo de um eu que, iludido, se projetava no futuro contra um eu sem ilusões, disposto a distrair-se com pequenas disputas de mesquinhas vantagens - prêmio de consolação para quem já perdeu um par ou dois de ilusões fundamentais.
Derrota do primata vivo e mutante que se desdobra com curiosidade sobre o mundo dos sentidos! Massa disforme, pronta a aceitar a Vontade não-livre dos déspotas no lugar de ilusões já mortas! E, mesmo absorvendo um pouco dessa postura inconfundível do oprimido mergulhado em uma aguda, assombrosa, confusão de figuras do passado com as do presente, o primata luta para produzir possibilidades novas de ação no cansado universo da identidade pessoal e profissional - aquela que nos faz ter nome, idade, profissão, e outras coisas.
Diria Vigotski que nossa personalidade é um agregado de relações sociais internalizadas: pois bem, assim nos desdobramos, entre quem fala e escuta, entre nós e nós mesmos, fatos de consciência que não raramente se opõem e se digladiam - como que dois sistemas, duas sínteses psíquicas, tão possíveis uma como a outra, embora nosso meio social cuide de selecionar esta ou aquela. Luria, acompanhando Zazetsky, viu os nada desprezíveis problemas gerados no mundo estilhaçado do rapaz, que, no entanto, lutou até a morte para preservar a sua consciência de si e a percepção do mundo.
Trombei com o tema do "Duplo" no livro homônimo de Dostoiévski e em conto de Borges; em "The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson; em "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde; em "O Homem Duplicado", de José Saramago. Todos, livros incríveis, desafios de ontem e hoje para uma psicologia da síntese psíquica, que retratam facetas inesperadas desse problema tão fascinante que nos persegue - como bem lembra Saramago - desde quando o primeiro primata olhou-se em um charco e, atônito, embaraçado, disse: "esse sou eu!". Ou quando o primeiro bebê mamífero, solitário e assustado, deixou-se agitar até que reaparecesse a sua singular e intransferível nutriz: "aqui está ela!", ou seus irmãozinhos, ou colegas de socius, que o seja: acompanha-lhe a própria formação de uma certeza, a certeza de que existimos e somos parecidos, mas jamais idênticos - que há ainda, abandonado no mundo, um nicho no qual possamos dispor a nossa singularidade. E que as semelhanças tornam-se pesadelo quanto mais se aproximam de uma igualdade, a despeito de, no fluxo hegemônico de uma sociedade à qual tanto agrada a linearidade da identidade, ela ser tão desejada. Veja-se o "Doppelgänger": figura mitológica, o duplo de todos nós, arauto não da vida, mas da morte:
Filosofou Dostoiévski, em carta a Ekaterina Yunga em abril de 1880 (na biografia de Boris Búrsov - “A personalidade de Dostoiévski”): a duplicidade “é o traço mais comum das pessoas... não inteiramente comuns. Um traço que, em linhas gerais, é inerente à natureza humana, mas que nem de longe se encontra em qualquer natureza e menos ainda de forma tão intensa como na sua. Eis por que a senhora me é tão íntima, pois esse desdobramento que há na senhora é exatamente igual ao que há em mim e que sempre houve em toda minha vida. Isto é um grande tormento, mas ao mesmo tempo um grande prazer. É a consciência intensa, a necessidade de que a senhora experimente em sua própria natureza a exigência de um dever moral perante si mesma e a humanidade. Eis o que significa essa duplicidade. Se a senhora não fosse dotada de uma inteligência tão desenvolvida, se fosse limitada e não tão conscienciosa, não haveria tal duplicidade.” (Bezerra, p.238)
[continua no futuro]
Diria Vigotski que nossa personalidade é um agregado de relações sociais internalizadas: pois bem, assim nos desdobramos, entre quem fala e escuta, entre nós e nós mesmos, fatos de consciência que não raramente se opõem e se digladiam - como que dois sistemas, duas sínteses psíquicas, tão possíveis uma como a outra, embora nosso meio social cuide de selecionar esta ou aquela. Luria, acompanhando Zazetsky, viu os nada desprezíveis problemas gerados no mundo estilhaçado do rapaz, que, no entanto, lutou até a morte para preservar a sua consciência de si e a percepção do mundo.
Trombei com o tema do "Duplo" no livro homônimo de Dostoiévski e em conto de Borges; em "The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson; em "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde; em "O Homem Duplicado", de José Saramago. Todos, livros incríveis, desafios de ontem e hoje para uma psicologia da síntese psíquica, que retratam facetas inesperadas desse problema tão fascinante que nos persegue - como bem lembra Saramago - desde quando o primeiro primata olhou-se em um charco e, atônito, embaraçado, disse: "esse sou eu!". Ou quando o primeiro bebê mamífero, solitário e assustado, deixou-se agitar até que reaparecesse a sua singular e intransferível nutriz: "aqui está ela!", ou seus irmãozinhos, ou colegas de socius, que o seja: acompanha-lhe a própria formação de uma certeza, a certeza de que existimos e somos parecidos, mas jamais idênticos - que há ainda, abandonado no mundo, um nicho no qual possamos dispor a nossa singularidade. E que as semelhanças tornam-se pesadelo quanto mais se aproximam de uma igualdade, a despeito de, no fluxo hegemônico de uma sociedade à qual tanto agrada a linearidade da identidade, ela ser tão desejada. Veja-se o "Doppelgänger": figura mitológica, o duplo de todos nós, arauto não da vida, mas da morte:
![]() |
Fonte: Wikipedia. Autor: Galiaoffri. |
Filosofou Dostoiévski, em carta a Ekaterina Yunga em abril de 1880 (na biografia de Boris Búrsov - “A personalidade de Dostoiévski”): a duplicidade “é o traço mais comum das pessoas... não inteiramente comuns. Um traço que, em linhas gerais, é inerente à natureza humana, mas que nem de longe se encontra em qualquer natureza e menos ainda de forma tão intensa como na sua. Eis por que a senhora me é tão íntima, pois esse desdobramento que há na senhora é exatamente igual ao que há em mim e que sempre houve em toda minha vida. Isto é um grande tormento, mas ao mesmo tempo um grande prazer. É a consciência intensa, a necessidade de que a senhora experimente em sua própria natureza a exigência de um dever moral perante si mesma e a humanidade. Eis o que significa essa duplicidade. Se a senhora não fosse dotada de uma inteligência tão desenvolvida, se fosse limitada e não tão conscienciosa, não haveria tal duplicidade.” (Bezerra, p.238)
[continua no futuro]