Adoniran Barbosa hipnotiza.
"Tiro ao Álvaro", mais do que canção, é uma piada cheia de risonha auto-comiseração; de quem conhece o português oficial, mas apenas para imprimir nele o gosto da palavra torneada nas falhas dentaduras do Povo.
Foto copiada do site: raizdosamba.com.br
Poeta da Má Fortuna dos pobres, que se apresenta como miserabilidade pungente, oprimindo os três construtores de uma Saudosa Maloca. Seus versos são atos de resistência contra o deus-dinheiro, que torna tudo passível de se trocar com tudo, desde que com volta - um volume de Propércio por uma lata de graxa para botas, já diria Marx. A descartabilidade do outro e o não-reconhecimento do que se constrói com as próprias mãos é mesmo ato de parasitas do trabalho alheio, que nunca entenderiam esses simples versos:
Que tristeza que "nóis" sentia/ Cada táuba que caía/ Doía no coração
Mundo de desterrados, em que, tal como mafiosos - a julgar por Robert De Niro em "Fogo contra Fogo" - a regra da felicidade é não ter, nunca, ninguém - e poder mudar-se com uma mala ou duas para perto do próximo emprego. Como diria Brecht: apague as pegadas!
Ah, meus caros, certamente é preferível ter morado na Saudosa Maloca, a viver no edifício-signo do maior mal da história da habitação o apartamento padrão - radicalmente equalizado a tantos outros, enquanto cada pobre vai construir sua maloca como queira e possa. A classe média, leiga e preguiçosa, assina seu contratinho nas mãos ávidas do burguês e reclama pela falta de closet, de um andar mais alto ou o quê.
Esses homens esquecidos - "Eu, Mato-Grosso e o Joca" - não se lembram do dia; mas descrevem a tragédia: os "hômi" vêm e derrubam a Maloca, casinha tão cheia de histórias condenadas ao mesmo horror e indiferença com que os trabalhadores almoçam ovo frito ou "Torresmo à Milanesa", sentados na calçada, sem higiene ou conforto. A situação lembra Saramago e esse trechinho de "Levantado do Chão":
É preciso que esse bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos (p.73)
"Saudosa maloca" tem andamento apertado, dramático, até que eles encontram uma pobre solução - solução para passar a noite, apenas, e tão somente, aquela noite que esse Deus caprichoso da Razão dos hômi lhes dá - e um refrão para homenagear a saudosa maloca, essa casa-quase gente, de gente-quase coisa:
Só "se conformemo"
Quando o Joca falouDeus dá o frio conforme o "cobertô"E hoje "nós pega" a paiaNas grama do jardimE pra esquecer "nóis cantemos" assim:Saudosa maloca, maloca queridaDim dim "donde nóis passemo" os dias feliz de nossa vida
O pobre que conta seu canto, guardou em si a maloca cruelmente derrubada (nessa parte do peito onde os hômi não entram). A opulenta Razão da ignorância, a Razão complacente a rir-se, com a indiferença da dura autoconsciência útil apenas para saber que não se sabe nada, e assim ficarão se depender de quem lhes toma casa, comida e Razão:
Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada (Adoniran Barbosa, "Torresmo à milanesa")
Adoniran já morava na cidade que "evoluiu" - vejam que termo abjeto - para hoje tocar fogo nas suas favelas, à busca dos preciosos terrenos escondidos sob suas táubas e latões. É a sina do pobre, que, amando ou não, dizendo a verdade ou apenas fugindo de sua companhia, cuidando da mãe e cuidando de si, tem por Lei correr atrás do trem das onze; ou a do noivo que chora a noiva morta - não por ter se mudado para a Europa, mas por ter sido esmagada na rua, a pobre Iracema que não prestava atenção ao atravessar a São João.
E de narcísico, fiquei com a referência a uma Gigi, a Gioconda do "Samba Italiano":
Piove, piove,
Fa tempo che piove qua, Gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui
Saudoso Adoniran! É pena que a juventude não tenha ainda aprendido a pagar-lhe tributo, o tributo às figuras cansadas, usadas e despejadas, mas cujo humor ou piedade nem mesmo os "hômi" podem tomar. Em "Despejo na favela":
Não tem nada não seu doutor/ vou sair daqui/ pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema/ em qualquer canto me arrumo/ de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco/ minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí hein/ como é que faz?