domingo, 28 de outubro de 2012

Humor inalienável

Adoniran Barbosa hipnotiza. 
"Tiro ao Álvaro", mais do que canção, é uma piada cheia de risonha auto-comiseração; de quem conhece o português oficial, mas apenas para imprimir nele o gosto da palavra torneada nas falhas dentaduras do Povo.

Foto copiada do site: raizdosamba.com.br

Poeta da Má Fortuna dos pobres, que se apresenta como miserabilidade pungente, oprimindo os três construtores de uma Saudosa Maloca. Seus versos são atos de resistência contra o deus-dinheiro, que torna tudo passível de  se trocar com tudo, desde que com volta - um volume de Propércio por uma lata de graxa para botas, já diria Marx. A descartabilidade do outro e o não-reconhecimento do que se constrói com as próprias mãos é mesmo ato de parasitas do trabalho alheio, que nunca entenderiam esses simples versos: 
Que tristeza que "nóis" sentia/ Cada táuba que caía/ Doía no coração
Mundo de desterrados, em que, tal como mafiosos - a julgar por Robert De Niro em "Fogo contra Fogo" - a regra da felicidade é não ter, nunca, ninguém - e poder mudar-se com uma mala ou duas para perto do próximo emprego. Como diria Brecht: apague as pegadas
Ah, meus caros, certamente é preferível ter morado na Saudosa Maloca, a viver no edifício-signo do maior mal da história da habitação o apartamento padrão - radicalmente equalizado a tantos outros, enquanto cada pobre vai construir sua maloca como queira e possa. A classe média, leiga e preguiçosa, assina seu contratinho nas mãos ávidas do burguês e reclama pela falta de closet, de um andar mais alto ou o quê. 
Esses homens esquecidos - "Eu, Mato-Grosso e o Joca" - não se lembram do dia; mas descrevem a tragédia: os "hômi" vêm e derrubam a Maloca, casinha tão cheia de histórias condenadas ao mesmo horror e indiferença com que os trabalhadores almoçam  ovo frito ou "Torresmo à Milanesa", sentados na calçada, sem higiene ou conforto. A situação lembra Saramago e esse trechinho de "Levantado do Chão":
É preciso que esse bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos (p.73)
"Saudosa maloca" tem andamento apertado, dramático, até que eles encontram uma pobre solução - solução para passar a noite, apenas, e tão somente, aquela noite que esse Deus caprichoso da Razão dos hômi lhes dá - e um refrão para homenagear a saudosa maloca, essa casa-quase gente, de gente-quase coisa: 

Só "se conformemo"

Quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o "cobertô"
E hoje "nós pega" a paia
Nas grama do jardim
E pra esquecer "nóis cantemos" assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim "donde nóis passemo" os dias feliz de nossa vida

O pobre que conta seu canto, guardou em si a maloca cruelmente derrubada (nessa parte do peito onde os hômi não entram). A opulenta Razão da ignorância, a Razão complacente a rir-se, com a indiferença da dura autoconsciência útil apenas para saber que não se sabe nada, e assim ficarão se depender de quem lhes toma casa, comida e Razão: 
Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada (Adoniran Barbosa, "Torresmo à milanesa")
Adoniran já morava na cidade que "evoluiu" - vejam que termo abjeto - para hoje tocar fogo nas suas favelas, à busca dos preciosos terrenos escondidos sob suas táubas e latões. É a sina do pobre, que, amando ou não, dizendo a verdade ou apenas fugindo de sua companhia, cuidando da mãe e cuidando de si, tem por Lei correr atrás do trem das onze; ou a do noivo que chora a noiva morta - não por ter se mudado  para a Europa, mas por ter sido esmagada na rua, a pobre Iracema que não prestava atenção ao atravessar a São João. 
E de narcísico, fiquei com a referência a uma Gigi, a Gioconda do "Samba Italiano":
Piove, piove,
Fa tempo che piove qua, Gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui
Saudoso Adoniran! É pena que a juventude não tenha ainda aprendido a pagar-lhe tributo, o tributo às figuras cansadas, usadas e despejadas, mas cujo humor ou piedade nem mesmo os "hômi" podem tomar. Em "Despejo na favela": 


Não tem nada não seu doutor/ vou sair daqui/ pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema/ em qualquer canto me arrumo/ de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco/ minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí hein/ como é que faz?

terça-feira, 23 de outubro de 2012

John Locke não foi um cara legal

"Recebendo anualmente uma remuneração quase astronômica, de cerca de 1.500 libras, pelos seus serviços ao governo (...), Locke não hesitou em louvar a perspectiva de os pobres ganharem 'um centavo por dia' (a penny per diem), ou seja, uma quantia aproximadamente mil vezes inferior a seu próprio vencimento, em apenas um dos seus cargos governamentais." (p.40)
"E enquanto as leis brutais de Henrique VIII e de Eduardo VI pretendiam cortar apenas 'metade da orelha' dos criminosos reincidentes, o nosso  grande filósofo liberal e funcionário do Estado - uma das figuras dominantes dos primórdios do Iluminismo inglês - sugeriu uma melhoria de tais leis ao recomendar, solenemente, o corte de ambas as orelhas, punição a ser aplicada aos réus primários".(p.41) (Mészáros, I. A educação para além do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2008)

*Nunca cheguei a ler Locke (e creio que não o farei). Mas ele me lembrou o Milton Friedman que, à beirada da morte, teve ainda energia para escrever a um jornalão americano sobre a reconstrução de New Orleans após o furacão Katrina. O que disse Friedman? "Excelente oportunidade para reconstruir o sistema educacional com um experimento de financiamento privado".
* E vocês achavam que esse bordão da crise como oportunidade tinha algum conteúdo filosófico sério?! Muitos acreditam. Cheguei a vê-lo em um artigo de psicologia que avaliei. 
* Ainda sobre Locke: acho que essa legislação sobre as orelhas não tinha a pretensão de ser tosca, vil, indecente, nem dotada de qualquer qualidade própria. O sujeito só estava tentando mostrar serviço - tentando fazer por merecer suas 1.500 libras anuais. E ainda falam bem da modernidade, ou do Iluminismo, como promessa?! 
Bem, nesse caso, só se for promessa de cortar orelhas. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Jactancia de la quietud

Escrituras de luz embisten la sombra, más prodigiosas que meteoros.
La alta ciudad inconocible arrecia sobre el campo.
Seguro de mi vida y de mi morte, miro los ambiciosos y quisiera 
       entenderlos.
Su día es ávido como el lazo en el aire.
Su noche es tregua de la ira en el hierro, pronto en acometer. 
Hablan de humanidad.
Mi humanidad está en sentir que somos voces de una misma
       penuria.
Hablan de patria.
Mi patria es un latido de guitarra, unos retratos y una vieja espada, 
la oración evidente del sauzal en los atardeceres.
El tiempo está viviéndome.
Más silencioso que mi sombra, cruzo el tropel de su levantada 
      codicia.
Ellos son imprescindibles, únicos, merecedores del mañana.
Mi nombre es alguien y cualquiera.
Paso con lentitud, como quien viene de tan lejos que no espera 
      llegar.

(Jorge Luis Borges, Obra poética. 2a ed. Buenos Aires: Emecé, 2010, p.70. Poema do livro Luna de enfrente, 1925)

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