"Às vezes, não somos fáceis e sabemos
disso. Por que teria de ser diferente? Por mais que o tempo passe, não há
perspectiva de que uma nódoa na carne deixe de ser uma nódoa na carne. Quisera
saber de ti, quanto tempo mais resta para que eu pudesse deixar um presente
para você, algo realmente para carregar vida afora; algo que dure e não desbote
com o tempo e as minhas dificuldades, mas fico aqui, sentada, sem poder me
mexer com algo que não seja distração e desatenção para o mundo fora deste
lugar, deste quarto, do elevador e da garagem, e o pequeno apêndice que há fora
disso, aquele que vai entre o trabalho e a praça de todos os dias.
Uma coisa que você me ensinou a
perceber é a perenidade em mim. Se alguém irascível pode tornar-se um pouco
mais controlado, é que a coisa era só incidental, casual, não necessária. Mas se
alguma insociabilidade se associa a um pouco de auto-estima; se à pessoa é
possível evitar ser irascível, mas não deixa de ser cheia de si, então, é que
ou a relação ou a pessoa são irrecuperáveis – e esse defeito não é defeito, é
algo que te constitui, é uma perna, um pulmão, um coração, mas está em algum
lugar menos palpável, essa fortaleza em ruínas que é a minha mente.
E o mundo lá fora, aquele depois
que o carro sai da garagem, que o porteiro fecha o acesso, e as paisagens
começam lentamente a se modificar, está aqui dentro, e talvez seja só inútil perder
o sono para imaginar novos meios de isolar-se, isolar-se, isolar-se... quando
teremos de tirar o lixo ao menos uma vez por semana.
Acho que ser, de algum jeito, um
objeto do nosso tempo é a verdadeira solidão". (B. Viterbo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário