terça-feira, 16 de junho de 2015

Meu miniconto publicado: "Paralisia"


Leiam-no na Revista Literária Benfazeja



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Minha espera chega ao fim. Somos presa e predador. Fora isso, o túnel escuro da noite infinita.

Ruído de tranca se abrindo, o predador saía. Minutos depois, voltava. Teria encontrado outra vítima em seu perambular? Se me encolhesse no mais absoluto silêncio e escuridão, talvez ele se contentasse com um golpe, ou um cagalhão pelo caminho (apenas para registrar passagem, depositar sua merda no seu território). Mas se ele já estiver faminto, pequenas alegrias não lhe servem. Presa, eu já não discernia a segunda do sábado, reclusa na cela, de cujo exterior conhecia tão pouco; trilhas nas quais minha imaginação teimava em caminhar, percebendo que os pés já não costumavam ir longe, próximos da cerca imaginária tão impossível de pular como uma ordem de execução do Juízo Final. Eu nunca o vi matar, mas sei que morrerei – e, a primeira de suas presas, vejo sua falta de habilidade: lentidão, excesso de golpes, mordidas e arranhões a esmo, qual filhote de leão ainda brincando com filhote de zebra. Também sou inexperiente em morrer, penso eu. Tenho tentado fazer minha parte, mas é difícil esquecer o pânico, me mexer um pouco que seja. Eu estou nele, ele está em mim. Logo, só eu estarei nele, e um pouco mais tarde, não existirei mesmo dentro dessa forma tão abjeta.

Em outros casos, uma blasfêmia poderia acelerar a execução: grito que Deus não existe, que a Bíblia é um livro de maldades, e ele acabaria com isso – mas ele já não consegue fingir que se importe com essas coisas. Vive por meio da crença em sua força e direito; eu, da fé na sua ferocidade. Quase morta, eu não existia por mim mesma, mas só por meio dele, como seu destino e presa. Grande como é, ele exercerá sua vez na cadeia alimentar ainda muitas vezes; eu não tinha tempo para conjeturas, verdades, explicações, pois estava prestes a cumprir o nosso acordo darwiniano; pacto de sangue, inscrito em minha genética como objetivo da genética dele; acordo mais sagrado que todas as leis criadas por todos os homens. Tão natural quanto racional, esse pacto adivinha-se nos seus vis olhos triunfantes, que eu vejo embaçados pelas muitas lágrimas que trocamos. Quem sabe, a piedade não lhe entrou no coração? Quem sabe, ele não cai morto por um raio ou pela lepra? Quem sabe, o Exército Vermelho não entra triunfante, como se esse lugar fosse Berlim, 1945? Quem sabe, o Papa não telegrafa para Ele, pedindo Paz na linguagem dos lobos? Quem sabe, eu receba clemência do governador do Arkansas, que nem vive a tantos zeros longe de nós? Nas peças antigas, eu poderia dizer minha última fala ou fazer o meu último gesto, e o Deus Ex Machina sairia de seu andaime com asinhas de papel, antes que o pano descesse e o suave sono voltasse às minhas pálpebras alarmadas pelo ir-e-vir do predador nesta noite (in)comum.

Mas predador que se preza não gosta de filmes ou peças: na sua ignorância animal, elas são representadas apenas pessoas da espécie inimiga, seres estranhos fingindo ser o que não eram. Ele pensava ser o que era, mas às vezes eu sentia que ele também representava, mostrando os dentes como quem imitasse os cavalos ariscos familiares à sua infância. Como prezar um mundo de fantasia à margem da densa crueldade? Ou mesmo dos monstros diabólicos, da negação do prazer suave pela utilidade bruta; do trânsito incessante de um quarto para o outro em busca de saciar o estômago antes de um sono pesado e sem imagens? Não foi frequente, mas cheguei a intuir uma vaga esperança: a de conversão de presa em parceira de suas peregrinações – e aí, nos associaríamos em cooperação ou simbiose (um cúmplice, um lambe-botas, um assecla, um filhote de predador, talvez). Mas seria tão impossível quanto pedir à jararaca que se amigasse ao rato. Somos de espécies inimigas, e nossa mistura seria uma aberração.

Prezamos a ordem das coisas mais do que nossas individualidades em particular. Arrepiam-lhe os pelos, que parecem intensificar o cheiro de meu temor, que, por sua vez, eriçam-no ainda mais. Esta é a minha hora (e nem um lambari frente a um cardume de tubarões temeria tanto); sei quando ele dá outros dois passos em minha direção. Lá fora, a noite escura apita forte, no ultrassom mais agudo que todos os agudos perceptíveis pela minha espécie: era o Nada (o túnel escuro da noite infinita? O deus da Morte nos subúrbios do meu coração? Meu pensamento continua apalpando as paredes dessa cela, à cata do tijolo podre pelo qual sairá, liberto dessa carne condenada. Tendo à grandiloquência, talvez apenas porque Ele, o Predador, tenha a mente selvagem demais para compreendê-la, satisfeito com a efêmera orgia do sangue ainda circulante em minhas veias.

Se Ele não se saciar... a fome voltará, e são três as opções: A) morto o apetite dele, eu estarei por aqui, cadáver exposto aos urubus que terminarão o serviço começado; B) apenas um de meus braços ou pernas servirão por hoje. Mas, amanhã, voltaremos à opção A; C) hoje ele me devora completamente.

Não imaginem que desisto: gritarei, mas será inútil; não há Salvador: só as doze crianças e o atirador de Realengo; Marion Crane e Norman Bates, Jesus e os centuriões; 6 milhões de judeus e Hitler. No ínfimo instante desse relato, ali sempre estará Ele. E ali também os seus ossos, que são da cor dos meus; os seus dentes de fera falsamente ultrajada, como se fosse eu o cordeiro que lhe suja o córrego das veias profundas e não ele que me contaminará com sua mordida. Eu lutarei, mas não conseguirei rompê-las, e, prazeroso, ele lamberá as feridas dessa batalha quase cômica na sua pequenez e banalidade.

Não sei se somos macho ou fêmea, mas isso não importa, pois se trata de carne. Seu andar pesa como o seu porte e vejo até cabelos entre os seus artelhos onde caem gotas de baba. Mas só vejo o túnel escuro da noite infinita, com mais vácuo do que planetas onde morar e presas para se comer. Ele está a dois míseros passos de mim.

Minha última esperança lança um olhar para a porta; e, custando a desarmar-se, convida-o timidamente para brincar. Seus olhos não me sorriem – antes, debocham. Não me atrevo a proferir palavra diante dos dentes que há tanto tempo roeram o osso da misericórdia. Vejo suas pupilas se dilatarem – desprezo, asco, “Venha, ser imundo, para que eu dê o bote final”.

Inútil espera, pois eu não vou até ele.

Nem volto para mim. 

Gisele Toassa
Nasceu em Bauru, coração de São Paulo. Literatura é sua paixão, mas ainda não publicou nada. Fez psicologia, fono e segue carreira acadêmica na UFG (talvez por amor à leitura ou falta de imaginação). Passou por São Paulo e Toronto, mas atracou em Goiânia. 
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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CICLISTAS, OS MUÇULMANOS DO TRÂNSITO: reflexões sobre bikes e a carrolatria




Mobilizada pelas más notícias sobre o clima, comprei a bike há mais ou menos um mês.

Não tardou que começasse a perceber a cidade de uma forma bem diferente, com novos medos, satisfações e indignações. Hoje percebo os danos da carrolatria na vida das pessoas e no espaço público. Vou explicar um pouco pra vocês.

Primeiro, as indignações. Se você, ciclista, se mantiver à esquerda, por não conseguir atravessar a rua congestionada, ou precisar virar (os motoristas mais irritáveis nunca relevam os seus motivos), muito provavelmente tomará buzinadas. Mas se andar pela direita em avenidas, em horários de pico, também tende a tomar buzinadas. Como todo signo, elas veiculam uma mensagem: "sai da frente! Foda-se! A rua é minha!". Sem escudo, você sente a buzina no seu cérebro. Em muitos casos, não tem onde se espremer, o que dá um pânico - e o pânico é totalmente contraindicado, pois o estado afetivo interfere diretamente com sua atenção e autodomínio, processos mentais fundamentais para um ciclista. Esse egocentrismo de muitos motoristas, em minha opinião, tem a ver com duas coisas:

1) o fetiche do carro: não somos nós que dominamos o carro, o carro é que nos domina. O carro te dá um acelerador fominha, feito para queimar o máximo de combustível possível. Um Celta velho dá fácil 120 km/h, mas você é obrigado a andar numa média de 40 km/h. Atrás de um ciclista, você faz 20 km/h, com sorte. Por isso, não importa tanto onde ou como o ciclista ande, mas sim que ele (in)exista - o ciclista é o muçulmano, o indesejável do trânsito, pois é a lembrança de uma era lenta que a carrolatria abomina. Embora, em muitos casos, o motorista fique muito mais tempo parado do que um ciclista - frustração contínua que também convida à braveza e à selvageria contra todos os outros seres humanos que ocupam a tua mesma avenida minúscula.

2) efeito "zip lock": dentro de um carro, sua percepção se reduz drasticamente (quando o motorista te taca a buzina, ele pode mesmo não perceber que você não tem área de escape). Fechado na sua bolha climatizada; ouvindo sua música ou falando ao celular; sentindo a ilusão do controle, o motorista-consumidor é um rei a caminho de seu palácio, para quem a feia cidade passa (deve passar) rápido. A bolha traz distrações nela mesma, o que talvez explique nossos muitos acidentes de trânsito. Mas todos sabem que distração significa colisão e o motorista não pode se dar ao luxo de olhar, parar e processar o que olha - uma vantagem inestimável de caminhar ou andar de bicicleta.

Um motorista mapeia a cidade pelos locais de estacionamento - daí que a era dos carros seja a mesma dos shoppings. Um ciclista constrói um novo mapa cognitivo da cidade. Torna-se sensível às mínimas oscilações do terreno, ao comércio local e mesmo à generosidade humana - ou à falta dela. Enquanto alguns quase batem pra te deixar passar, outros tiram fina da tua bike pela mais pura maldade. Ou por não perceberem que, ali, vai uma pessoa com tanto direito à cidade quanto eles.

Em nossa cultura, carro virou poder. Sinto um tédio imenso ao ver quanto tempo um ser humano (em particular, do sexo masculino) é capaz de falar de carros. Se você fica sem assunto com alguém, é só falar do tempo ou de carros, esses equivalentes universais. O carro atrofia a imaginação e fomenta a inveja. Quanta gente não vende as calças só para ter um? Até tua vida sexual depende dele. Como diria o Mundo Livre: sem carro, seus testículos viram um saco. Embora, com ele, você tenda à hipertensão, diabetes e obesidade pela falta de exercício - fora a preguiça, que é bem mais difícil de mensurar. E aí você vai ter que ir de carro à academia ou ao clube, pra não ganhar em gordura o que perder em saúde. Esse é um exercício socialmente aceitável, pois é pago, classe média/alta e devidamente autista - andar de bicicleta em dias da semana, na rua, é coisa de pobre.

O elemento parasítico do carro está em que, usando-o, nós consumimos a energia do planeta e não a nossa própria. Enquanto o ciclista se pergunta se tem fôlego e segurança pra ir a tal ou qual lugar, o motorista pára ao lado da bomba de gasolina e saca seu cartão mágico - ou sua arma ecocida.

Não me levem a mal. Eu tenho um carro. Ele sai da garagem umas poucas vezes por semana, quando não dá pra ser de outro jeito. Mas estou gostando um bocado de viver de bike. A bike te faz lutar incessantemente pela tua vida, já que a três por quatro você pode ir engraxar a rua ou as poderosas rodas de alguém. Faz suar muito e te expõe ao mundo - leia-se: à temperatura - real, mas, ao mesmo tempo, tem um valor ético que essas máquinas estúpidas às quais nos apegamos é incapaz de nos dar. Ainda vai chegar a hora em que os psicólogos vão usar as bikes em terapias contra o medo. Se você tiver um pouco dele, ou quiser tentar um novo modo de vida, vale a pena....

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