terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CICLISTAS, OS MUÇULMANOS DO TRÂNSITO: reflexões sobre bikes e a carrolatria




Mobilizada pelas más notícias sobre o clima, comprei a bike há mais ou menos um mês.

Não tardou que começasse a perceber a cidade de uma forma bem diferente, com novos medos, satisfações e indignações. Hoje percebo os danos da carrolatria na vida das pessoas e no espaço público. Vou explicar um pouco pra vocês.

Primeiro, as indignações. Se você, ciclista, se mantiver à esquerda, por não conseguir atravessar a rua congestionada, ou precisar virar (os motoristas mais irritáveis nunca relevam os seus motivos), muito provavelmente tomará buzinadas. Mas se andar pela direita em avenidas, em horários de pico, também tende a tomar buzinadas. Como todo signo, elas veiculam uma mensagem: "sai da frente! Foda-se! A rua é minha!". Sem escudo, você sente a buzina no seu cérebro. Em muitos casos, não tem onde se espremer, o que dá um pânico - e o pânico é totalmente contraindicado, pois o estado afetivo interfere diretamente com sua atenção e autodomínio, processos mentais fundamentais para um ciclista. Esse egocentrismo de muitos motoristas, em minha opinião, tem a ver com duas coisas:

1) o fetiche do carro: não somos nós que dominamos o carro, o carro é que nos domina. O carro te dá um acelerador fominha, feito para queimar o máximo de combustível possível. Um Celta velho dá fácil 120 km/h, mas você é obrigado a andar numa média de 40 km/h. Atrás de um ciclista, você faz 20 km/h, com sorte. Por isso, não importa tanto onde ou como o ciclista ande, mas sim que ele (in)exista - o ciclista é o muçulmano, o indesejável do trânsito, pois é a lembrança de uma era lenta que a carrolatria abomina. Embora, em muitos casos, o motorista fique muito mais tempo parado do que um ciclista - frustração contínua que também convida à braveza e à selvageria contra todos os outros seres humanos que ocupam a tua mesma avenida minúscula.

2) efeito "zip lock": dentro de um carro, sua percepção se reduz drasticamente (quando o motorista te taca a buzina, ele pode mesmo não perceber que você não tem área de escape). Fechado na sua bolha climatizada; ouvindo sua música ou falando ao celular; sentindo a ilusão do controle, o motorista-consumidor é um rei a caminho de seu palácio, para quem a feia cidade passa (deve passar) rápido. A bolha traz distrações nela mesma, o que talvez explique nossos muitos acidentes de trânsito. Mas todos sabem que distração significa colisão e o motorista não pode se dar ao luxo de olhar, parar e processar o que olha - uma vantagem inestimável de caminhar ou andar de bicicleta.

Um motorista mapeia a cidade pelos locais de estacionamento - daí que a era dos carros seja a mesma dos shoppings. Um ciclista constrói um novo mapa cognitivo da cidade. Torna-se sensível às mínimas oscilações do terreno, ao comércio local e mesmo à generosidade humana - ou à falta dela. Enquanto alguns quase batem pra te deixar passar, outros tiram fina da tua bike pela mais pura maldade. Ou por não perceberem que, ali, vai uma pessoa com tanto direito à cidade quanto eles.

Em nossa cultura, carro virou poder. Sinto um tédio imenso ao ver quanto tempo um ser humano (em particular, do sexo masculino) é capaz de falar de carros. Se você fica sem assunto com alguém, é só falar do tempo ou de carros, esses equivalentes universais. O carro atrofia a imaginação e fomenta a inveja. Quanta gente não vende as calças só para ter um? Até tua vida sexual depende dele. Como diria o Mundo Livre: sem carro, seus testículos viram um saco. Embora, com ele, você tenda à hipertensão, diabetes e obesidade pela falta de exercício - fora a preguiça, que é bem mais difícil de mensurar. E aí você vai ter que ir de carro à academia ou ao clube, pra não ganhar em gordura o que perder em saúde. Esse é um exercício socialmente aceitável, pois é pago, classe média/alta e devidamente autista - andar de bicicleta em dias da semana, na rua, é coisa de pobre.

O elemento parasítico do carro está em que, usando-o, nós consumimos a energia do planeta e não a nossa própria. Enquanto o ciclista se pergunta se tem fôlego e segurança pra ir a tal ou qual lugar, o motorista pára ao lado da bomba de gasolina e saca seu cartão mágico - ou sua arma ecocida.

Não me levem a mal. Eu tenho um carro. Ele sai da garagem umas poucas vezes por semana, quando não dá pra ser de outro jeito. Mas estou gostando um bocado de viver de bike. A bike te faz lutar incessantemente pela tua vida, já que a três por quatro você pode ir engraxar a rua ou as poderosas rodas de alguém. Faz suar muito e te expõe ao mundo - leia-se: à temperatura - real, mas, ao mesmo tempo, tem um valor ético que essas máquinas estúpidas às quais nos apegamos é incapaz de nos dar. Ainda vai chegar a hora em que os psicólogos vão usar as bikes em terapias contra o medo. Se você tiver um pouco dele, ou quiser tentar um novo modo de vida, vale a pena....

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