Meio que enlouqueço o pobre Edu, com microataques de pânico até a partida, que perduram até o segundo dia de viagem. Dividimos os 2638 km em 4 parcelas: dia 1: até o oeste da Bahia; 2: até Feira de Santana; 3: até Maceió; 4: até a almejada Natal.
As surpresas foram diversas das que me atemorizavam: pneus exemplarmente cheios, nenhuma multa, acidente; um único erro no Google Maps. O mapa físico que comprei para alguma contingência inesperada agora é peça do museu doméstico, junto com o aparelho de DVD e o gravador de fitas K-7. Bem está o que bem acaba, ou o que começa deixando memórias tão fortes, embora, no fundo, nada loucas.
Reavalio minha classificação de loucuras. Classe média não faz loucuras: loucura seria cruzar o Brasil no pau-de-arara, com crianças, a pé ou de bicicleta; migrar sem local ou objetivo definido, como meu bisavô Frederico (que caiu no mundo até, ao que parece, chegar à mendicância), não esta minha, a de fazer centenas de km em uma SUV seminova, com bolsa térmica forrada de gelo falso que refresca água verdadeira.
Fico tentada a dizer que as loucuras ficaram do lado de fora, nos lugares por onde passamos: nos sinais de eras passadas, nos cavalos que são meio de transporte DE VERDADE (especialmente na Bahia e no Sergipe); nos sinais de pobreza sem esperança de melhora, dos vilarejos cercados por centenas de quilômetros de terras sem intervenção humana (e também, sem empregos visíveis), feitos de ruas tão destruídas que fica difícil saber se, para atrapalhar o trânsito, alguém abandonou pedras na rua de areia, ou se simplesmente a rua era calçada com pedras que foram desaparecendo, até que o buraco predominasse; nos vilarejos com uma praça central onde jovens e velhos fazem footing desviando da bosta de cachorro, ao longo do principal rio da região (um triste, fedorento esgoto), e onde se vê, ao fundo, um tanto quanto deslocada, uma bela ponte que deve datar dos governos Lula I ou II.
Rumo à bela cidade que seria nosso destino final, passamos por lugares onde poucos vão voluntariamente, como esta cidadezinha baiana que se preparava para um alegre carnaval. O Google Maps continuava nos mandando para a rua principal, toda ela interditada para os foliões, e pela qual só passamos após explicar aos servidores que éramos viajantes e não havia outro meio de chegar ao hotel.
Uma pessoa que eu quis conhecer, mas não pude, era um artista hippie expunha seu artesanato em uma kombi aberta, tocando Raul Seixas em volume muito alto. Ele sorria. Nem parecia querer outra vida. Ouro de verdade também é Ouro de tolo, o velho Raul poderia dizer. Entre a SUV e a velha kombi, quem seria o insano?
Repensando as cenas daquele dia, penso qu não há loucura alguma em viver nas ruas indecisas entre a pedra e o buraco. Viver um romance na orla do esgotão pode ser tão lindo quanto no Hudson River Park; e a humanidade andou a cavalo por muitos milênios mais do que em carros seminovos.
Viajar foi sempre um meio de me conhecer, e (re)descubro, conformada, que isso jamais vai se concluir. Enquanto eu não descobrir, como os amigos do Raul, qual o sentido da vida, partes de mim espalhadas em todos esse mundo desconhecido, prossigo, dividida entre o Corcel 73 e a pipoca dos macacos.
Foto: Eduardo Carli
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