ANTES de vir para o Canadá, minha ideia era a de jamais aceitar sem argumentar qualquer tipo de declaração preconceituosa sobre o Brasil e os brasileiros. Também jamais cederia à perspectiva, tão comum no Brasil, de que tudo no "primeiro mundo" é melhor do que em nossa terrinha.
Quanto ao primeiro ponto, tive a boa sorte de estar em um país no qual o multicuturalismo e o respeito à diferença estão enraizados na vida cotidiana. O local do seu nascimento importa muito pouco (com frequência, na imprensa e fora dela, você escuta a expressão "canadian" aplicada aos nascidos no Canadá ou aos que o adotam). É de estranhar que o Canadá tenha milhares de quilômetros de fronteira com o país mais xenófobo do mundo; e mais: que as origens históricas de ambos sejam tão semelhantes. Meu palpite é de que os ingleses adeptos das seitas fanáticas expulsas da Inglaterra foram os que deram origem aos EUA, no qual infelizmente temos nos espelhado, ao invés de aprender um pouco com os vizinhos mais ao norte.
Um exemplo dessa diferença vem desde a época em que Billie Holiday, a diva negra estadounidense, esteve no Canadá e se espantou com a possibilidade de ser servida igualitariamente em um espaço frequentado por negros e brancos. O país recebeu muita população negra dos EUA que veio em busca de uma vida melhor, impossível no vizinho sulista. Confesso ter sentido espanto e vergonha ao constatar que, na York University, bastante elitista (pública, mas paga), haja mais pessoas de pele escura do que na UFG ou na USP (embora no Brasil a população afrodescendente seja bem maior), bem como perceber a quantidade significativa de jovens muçulmanas que circula com os véus de sua religião, sem causar celeuma nos corredores (bem, certamente há tensões religiosas, mas elas são bem mais pontuais do que no EUA e Europa. Cito o caso de um jovem muçulmano que requisitou não fazer trabalhos em grupo com garotas. A permissão foi negada pelo professor, mas a York - pautando-se nas leis de Ontário - recomendou a ele o acolhimento dessa demanda, o que gerou uma chuva de manifestações indignadas de pais de garotas, dizendo que jamais mandariam suas filhas para a York).
Passado o primeiro tópico, vem o segundo, bem mais doloroso. Lentamente, ao longo desses dois meses, admiti: quase tudo aqui é melhor do que no Brasil. Mas essa verdade precisa deixar de ser tratada como jargão - que se ouve tanto da elite que nos governa - pois isso só aprofunda nosso fatalismo e senso de inferioridade. Não nos auxilia a crescer como nação. Se há diferenças qualitativas, é preciso explicá-las com cuidado. Passo a alguns pensamentos aleatórios, pautados nas minhas vivências, sobre um tema crítico: o Canadá é um país do centro do capitalismo - burguês, individualista, laissez faire, correto?
Sim, é uma sociedade individualista e laissez-faire. Por exemplo: as universidades incentivam bastante a competição entre os alunos por meio dos mais diversos prêmios, em todas as áreas do conhecimento. Então, qual é a diferença com relação ao Brasil - individualista, também?
A diferença abissal está em que o individualismo canadense está mergulhado em um senso de comunidade ampliada, e o brasileiro, não. É esse senso de comunidade (de pertencimento a um todo maior, a um país marcado pelo respeito à diferença e pela justiça social), fomentado tanto pela educação básica quanto pela socialização cotidiana, o segredo da tão sonhada 'civilização'. Esse senso faz a alteridade emergir detrás das barreiras da classe social ou origem étnica e impede as pessoas de perturbarem os vizinhos com música alta, discriminar gente mais pobre ou escura, cortar filas, jogar lixo no chão, arrancar até o último centavo do turista que veio conhecer a natureza e a cultura do país. Esse senso de comunidade é em grande medida responsável pelo que, abstratamente, a Veja chama de 'civilização' - como diria Espinosa, um país é forte por ter uma sociedade forte, não pela violência de seu Estado (de fato, o conceito hobesiano de Estado parece se aplicar ao estado brasileiro - a presença do Estado aqui não é ostensiva, mas discreta). O individualismo é arrefecido - e de certa forma, orientado - por um senso de comunidade que as elites e a mídia tupiniquim (tão viajadas, mas tão seletivas nas suas pautas) fingem que não percebem.
Esse senso de comunidade é o contraponto do laissez-faire, contraponto tão indesejável para quem nos governa. A imitação das ideias liberais gestadas no centro do capitalismo pelas elites do Brasil pegou apenas o 'individualismo empreendedor' como referência. E o adaptou ao contexto de uma sociedade que sempre acreditou na inferioridade biológica da sua população mestiça, qualquer que fosse a ideia importada que estivesse na moda. Essa crença organiza as nossas relações sociais e institucionais, fazendo com que muitas pessoas neguem sua própria mestiçagem como modo de se afirmar mais próximas da 'civilização' - civilização essa que (ao menos aqui no Canadá) é mais mestiça do que nunca, e não sofre de uma gota sequer da baixa autoestima do brasileiro.
O nosso Estado é corrupto, predatório? Mas fomos nós o construímos, isso é culpa nossa? E dou uma resposta sartreana: seja a nossa herança igualitária ou não, agora somos responsáveis pelo que fazemos com ela. Nem que, para isso, tenhamos que criar uma revolução e pôr esse Estado abaixo, reconstruindo nossa identidade e o nosso senso de pertencer a um todo maior; em outras palavras: criando um real senso de comunidade. Precisamos fazer isso sem nos refugiarmos na religião como forma de defesa contra o individualismo oportunista, selvagem, agressivo, antissocial - justamente porque desenfreado - que nossas elites criaram e o povo imita. Nada contra as religiões em geral (o Canadá é prova de que é possível a várias delas coexistirem em relativa paz), mas ela se aplica a uma comunidade restrita de pessoas. Para criar outra sociedade, precisamos de algo mais universal.
A reação contra esse individualismo desenfreado (e até sua afirmação; tudo anda tão confuso no Brasil!) talvez esteja na origem da indignação contra o Estado (e na violência) exercida por uma população que não sabe o que ela é, nem para onde pode ir - mas já tem consciência de que as coisas poderiam ser melhores. Está, finalmente, nascendo no Brasil um senso de comunidade e justiça social que as elites nunca trouxeram em suas grandes malas, nas quais só há espaço para uísque, jóias e eletrônicos?
PS: falaciosa a noção de Contardo Calligaris, de que 'o indivíduo burguês transmite aos seus descendentes apenas o compromisso de continuar a busca pelo dinheiro e sucesso'. O autor fala apenas das elites que ele atende (ou talvez sobre a estadounidense), mas não da noção de indivíduo que está arraigada aqui no Canadá, por exemplo. Há que se fazer mais comparação de culturas.
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