sexta-feira, 20 de junho de 2025

Minha conversa com o diabo

 



Acima, veja as várias formas que o Diabo pode assumir, contrastando com o bem absoluto na forma de um cãozinho

[Deu saudade desse sketch clássico do meu blog aposentado, Cidade dos Sonhos, publicado nos idos de 25/11/2006. 

Andava lendo um bocado de peças e textos do Woody Allen naquela época, daí o formato dialógico. Que saudade de escrever para meia dúzia (a meia dúzia que realmente lerá agora vai chegar a uma dúzia um recorde)! 

Ainda consigo rir dessa tentativa ateia de descobrir o que é o Mal, vinda dos cafundós dos meus tempos de doutoranda sem tostão (e muitas angústias). Só o cão é atual; hoje, as angústias são outras. E os óculos também servem para a presbiopia]

--

“O que é o mal?”, taí uma questão que sempre me intrigou. Resolvi chamá-lo em pessoa, para que me respondesse. Ele, o capeta, o coisa-ruim, o diabo.
A expressão, debochada e cínica. Não era feio, mas repelente e, tal como no Fausto, mancava um pouco. Um tanto quanto mal-educado, entrou em meu quarto na hora de dormir e se sentou em minha cadeira preferida (aliás, a única).
Gi: Boa noite. Creio que já nos conhecemos.
Diabo: Sim, de outros tormentos (examina minha estante). Você tem bom gosto literário, mas seus livros técnicos não combinam entre si.
Gi: Vamos cortar este papo. Explique-me o que é você.
Diabo: Bem, eu diria que esta sua invectiva não foi muito polida. Mas sim, vamos lá (abre meu minidicionário e lê) “Mal. sm. 1. O que é nocivo, prejudicial, mau. 2. O que se opõe ao bem, à virtude e à honra. 3. Enfermidade. 4. Desgraça. 5. Prejuízo.”
Satisfeita? Sei que você já pensava algo assim. Quanto a mim, não passo de um símbolo.
Gi (Em crise): Isto é um pouco superficial, não acha?
Diabo: Compre um melhor dicionário.
Gi: Quero saber o que é o mal para não pensar nele nem praticá-lo. Deve haver algum sinal secreto. Quando eu acreditava em você, bem como em Deus, as coisas eram mais simples. O mal era a desobediência, a agressão e a morte. O desdém, a libertinagem. Era não pagar contas, não ajudar o próximo, beber, ir para a cadeia e decepcionar os pais. Agora não sei.
Diabo: Esse aí é o mal cristão. Família, obediência, propriedade. Você mudou de vida. E veja, policiamentos não adiantam muito. A ocasião faz o ladrão. Be yourself, that´s the question. Mal, bem, tudo acaba em excrementos e vermes... Podridão do túmulo, se você visse, é até legal...
Gi: Isto é para sujeitos sem vontade própria. Gosto de manter nas mãos as rédeas da minha vida. Mas já não sei o que é mal imaginário e mal-real.
Diabo: Hum, hum (espia, de longe, minha gaveta de calcinhas). Você está pensando de modo maniqueísta, e ainda cristão. Precisaria viver melhor, ser livre dos seus controles internos, é isso. Fica aí, parada um domingo inteiro, pensando no que é o mal, que coisa tonta. Não vai querer ser má, se for feliz. Comprei um pacote de massagens que é miraculoso, menina, vc tem que tentar...
Gi: Ser livre e ser má são coisas diferentes. Talvez sejam mesmo opostas. Prazer e bem também não se igualam. Exemplo: se eu abrir “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, esperar uma mosquinha pousar nele, e matá-la, aí eu estaria fazendo o mal. Sou livre para fazer isto ou não, bem como para deixar de fazer outras coisas más ou boas. Mas, de fato, ser minimamente bom implica em admitir-se que não se é inteiramente livre de viver em sociedade, fazemos o bem não só pelo outro, mas também pela troca... nisso tudo existe um comércio afetivo complicado. É por isso que eu gosto de gente generosa, gente que dá, simplesmente, não pede nada nem quer nada.
Diabo: Livro bom para matar coisas.
Gi: É, mas um pouco solene e pomposo demais. Prosa bíblica é assim.
Diabo: Olha aí, vc já está falando mal de alguma coisa.
Gi: A idéia de matar moscas foi sua!
Diabo: Que nada, leia sua última fala (Gi volta o texto e percebe que se enganou). Pura maldade.
Gi (suspira): nem tanto... e nem foi criativa.
Diabo: Essa coisa de ser mal é relativa, não existe em si, exceto nos casos mais óbvios. (Enfiando meus velhos óculos na cara) varia por: 1) intensidade/amplitude; 2) sabor; 3) objetos a que se dirige (mente/corpo; amigos, família, desconhecidos de classe/tamanho/forma diferente de você); 4) instrumentos com que é infligido. Quanto maior é o seu poder, mais profunda é a maldade que pratica. Sem contar que o mal só pode ser aplicado a gente, plantas ou animais, nunca a coisas.
Gi: Até às águas-vivas?
Diabo: Esses bichos já têm um sistema nervoso.
Gi: Acho que nós seguimos uma lógica de porcos-espinhos, sei lá. Schopenhauer disse isso. Eles se reúnem para se aquecer, mas caso se aproximem demais, se machucam. Acho que o mal é algo que se faz por medo ou ignorância do outro. Mas é diferente o mal intencional e o involuntário.
Diabo: Não, não. Isso dos porcos só mostra o contrário; as pessoas se arranham justamente porque se conhecem demais, porque são pequenas e precisam repartir espaço, tempo, coisas assim; porque às vezes sentem ódio e precisam aliviá-lo. Dar uns cutucões faz parte da vida. Você pode ser mal e saber demais. Sade era assim. E também a Marquesa de Merteuil. Agora, saber e não saber são coisinhas portáteis, cabem em qualquer parte, cães sem dono. Ser mau é estar falto de algo mais profundo...
Gi: Gostei de “Ligações Perigosas” e da marquesa. Você acaba admirando-a (gosto de gente inteligente). Mas de algum modo comecei a acreditar aí que o mal vem, mesmo, das sensações e dos prazeres, da inteligência feita para alcançar os recantos íntimos do outro, explorá-los e reduzi-los a pó, tão vil e simplificadamente quanto esses recantos eram sublimes e complexos. Emporcalhar e dizer que nada é sagrado é uma característica dos maus. Ontologia negativa, narcisismo sem controle.
Diabo: Oras... Inteligência não é sensação, é mais que isso.
Você gosta de Chianti? Podemos tomar algum, enquanto eu te mostro fotos de maldades. Aí você saberá o que ela é.
Gi: Você é um pervertido.
Diabo: Bem, eu me esforço (sorri, lisonjeado)... tu me temes. Mas o mal como fato ordinário não passa de um cálculo matemático. Você olha para as coisas que te satisfazem, e seu inconsciente escolhe a melhor para você; as outras, você descarta, sem saber o que fez direito, e às vezes, violando algumas coisas boas em si mesmo. Se tudo no mundo fosse decidido com muita ponderação vocês morreriam de fome até decidir se querem almeirão ou cenoura. Uma das coisas que espalham o mal absoluto é não se implicar direito, reduzir as pessoas às curtas medidas do estereótipo, marionetes para o seu querer. É uma excitação perturbada. Não é possível fazer o bem o tempo todo; a satisfação de se fazer o bem não é a única que pode existir na vida, é contra a natureza humana, você acabaria sendo “O Idiota”, ou aquele cara do “Sonho dum homem ridículo”... só sei que os justos sentem prazer em praticar a justiça, mesmo que ela seja, imediatamente, um mal.
Gi: Então, ser mal é trair-se a si próprio.
Diabo: Ser boa foi para você, até agora, fidelizar-se com uma verdade morta, ou seja, uma mentira prática, concebida para um tempo e lugar diferentes. Conheci muitos desses teus santos, e garanto que eles eram bem maus. A vida agora pede prazer e não reflexão.
Lembra-se? “There´s something deeply ghostlike. And we are so horribly afraid of the light...”. Ibsen era um sujeito que sabia olhar-me na cara sem se deixar seduzir...
Gi: Há momentos em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Prazer, de novo, eis a sua questão. Eu não gosto de santos, nem de Igreja alguma; nem creio que ser bom seja ser santo, celibatário, ou algo assim. Pergunto-me, no entanto, se os prazeres são iguais; creio que não, mesmo neles há tons diferentes, talvez regiões cerebrais distintas. O prazer não é mau em si mesmo. Onde estiver sua desvantagem, é onde estará sua fraqueza e os males. Se estiver desempregado, pobre, for feio ou louco, estará frágil para o mal social...
Diabo: Você está embolando as questões. Deveríamos agora discutir se o mal é uma necessidade em si, presente pra todos e, caso seja, porque os mais maus parecem ser os homens, especialmente os inteligentes, jovens, bonitos. Vivem imersos nos preconceitos da cultura, às vezes fingem que os invertem... São-no na aparência; mas eu sei que o Mal não escolhe sexo, idade, condição social. Mas, de todo modo, está na minha hora. Vou a um jantar de caridade (Aproxima-se da janela e olha lá embaixo) Acha que consigo cair suavemente na grama?
Gi: Como foi mesmo que vc entrou aqui?
Diabo: Ho, ho, ho. Tenho truques que vc nem imagina. É que eu estive pensando... beh, será que a Anita tá afim de me acompanhar?
Gi: Mas... vc não ia pular a janela? Como vai encontrá-la?
Diabo: Aí ela ficaria mais impressionada.
Gi (Pensando numa maldade): Manda.
(Ainda com os velhos óculos, o Diabo esborracha-se no chão. Gi não o socorre, mas procura um psicoterapeuta depois. Anita, minha companheira de república, assiste a Eu, a Patroa e as Crianças comendo goiabada. E eu continuo a pensar em porquê diabos eu não fiz essas maravilhosas lentes anti-reflexos antes)

domingo, 11 de maio de 2025

Umbigos, beques e LPs: revendo Beleza Americana (1999)

Vi, revi e comprei esse grande filme na época de seu lançamento. Sentia algo cativante no humor autoirônico da obra de Sam Mendes. Revê-lo agora, em minha própria crise de meia-idade, foi como reencontrar um amigo de conversas casuais, em que, de repente, descobrimos uma profundidade insuspeita. Uma vida interior interessante e rica.

Antes, agrupava-o apenas entre essas fortes obras de crítica cultural americana do crepúsculo - majestoso crepúsculo, diga-se de passagem - da era do grunge. Pontos principais da nova leitura: no conteúdo, existe algo de trágico sob a superfície das taras, do vazio da vida de Lester, e, na forma, um apuro fotográfico ímpar, a mão de um gênio na condução cinematográfica de Sam Mendes.

Em outros tempos eu me apiedava de Lester. Tipo, muito. Agora que sou um Lester, me exaspero. A vida nos derrota sem passar o recibo, sem mostrar o placar, e como mostra a literatura em psicologia do desenvolvimento, não sentimos a idade que temos até que, de repente, o jogo está quase no fim.

Assim, posso entender os tarados repulsivos, velhos ou de meia-idade, que tentam se aproximar das mocinhas. Eles não sabem que se tornaram repulsivos: apenas não se veem como mais velhos; sua experiência de vida ressalta o inestimável (e eterno) valor dos prazeres mais simples. Como Lester: um sexo animal, um bom beque, um LP que você escutava até cansar. Lester revive a esperança de traçar uma linda garota, malhando no jardim da garagem ao som de Pink Floyd. Coloca a esposa no papel da mãe a ser confrontada, elevando o jovem vizinho adolescente ao lugar de modelo a se seguir, para quem conta histórias de loucuras adolescentes nos anos 1970.
Eu me senti meio Lester meses atrás, quando narrava a um grupo de jovens cenas de alguma boate exótica da Rua Augusta. O quão patético é isso? Sim, bastante patético. Esta p*** vida não lhe dá segunda chance e você por vezes se sente assim, um cheque em branco que volta sem fundos - não do banco, mas da era do cheques para carteira digital do Google.
Sinto que a câmera atravessa o mundo interior um tanto quanto esvaziado dos personagens. E se alguém se aproximar do nosso mundo, haveria também sinais desse vácuo, dessa fragilidade, dessa solidão? A ameaça de Lester contra a companhia que o emprega é, talvez, uma caquética revolta adolescente contra o sistema ao qual ele aderiu, que agora, mais velho, não lhe dá margem alguma, nem mesmo para criar um modesto acordo de sobrevivência sem se sujar.
Mas, quando vemos as novas atividades Lester, lembrando que cada dia que nasce é o primeiro do resto de sua curta vida, acompanhamos mais uma segunda chance de que ele, se distraindo, a desperdiçe outra vez.
A Gisela de meia-idade apreciou muito mais os outros personagens, seu apego à autoajuda para resolver uma também irremediável solidão. Carolyn não é tola nem autoritária, mas frágil e temerosa. Beleza Americana parece se movimento no mundo pirandeliano dos seis personagens em busca de um autor. Quem pode ser, e onde está nosso autor? Quem vai refazer a vida quebrada, preencher esse vazio? Os personagens não se realizam realmente, apenas atuam, enquanto a consciência, intacta, sabe de seu ocaso e se afunda, a falta de termo melhor, em sua própria impotência.
Escrevo essas palavras sentada numa tapiocaria muito bonita, onde sopra a brisa natalense e não tenho mais nada o que desejar. Mas aqui, fecho a conta e a minha reflexão final: para quem não tem nem mesmo minha pequena obra para chamar de sua, imagino que o sentimento da vida gasta e desgastada a serviço da iniciativa privada deva ser verdadeiramente desesperador. Aí é que a tragédia de Lester, de um jeito ou de outro, se torna a própria tragédia de todos que vendem horas para enriquecer o topo da pirâmide no modo de produção capitalista. Haja LPs do Pink Floyd ou umbigos de pin-ups para dar jeito nela.

Beleza Americana, 1999. Direção de Sam Mendes.




sábado, 19 de abril de 2025

Loucura derretida. Episódio 4: There´s a big, a big hard sun...

"O Sol, o Sol", balbucia Edward, o filho único de Ms. Alving, ao perder para sempre a sanidade nas nuvens da demência... Assim termina "Espectros", de Ibsen, uma das minhas peças favoritas.
Origem última da vida (combinado com a generosa água que sob ele se agita, como Gaia sob Crono), lá estava Ele, ocupando sem cerimônia nosso quartinho à beira-mar. Nossas delgadas cortinas não foram páreo para aquela imensidão de amarelo e azul. Aqui, no hemisfério sul, a Aurora faz seu passeio pelo céu estendendo dedos que não são róseos, mas sim dourados. Estamos na cidade de Marechal Deodoro, pertinho de Maceió. O sol já nos prepara para a plenitude equatorial de sua existência potiguar, como que nos encorajando a pegar o trecho final de nossa viagem.... "Venham, estou à espera...".
Edward Alving despedia-se do Sol; nós viemos ao seu encontro, e tudo que lamento é não estar de férias para poder caminhar sem pressa sob o esplendor de seus raios que ameaçam queimar minha pele branquicenta. Um anticlímax, por assim dizer: sedutor e mortal.
A Aurora, linda e pujante como eu nunca vi, nos apresenta ao Sol que nos guiará pelo resto do dia, acompanhando a estrada curva - na horizontal e na vertical (sim, na vertical. A BR-101 é repleta de lombadas-surpresa).
Perturbam-me as casinhas à beira da estrada pintadas só na parede frontal, enquanto as outras paredes permanecem com os tijolos à vista. "Não faz sentido", digo, tentando convencer o Edu, que não se incomoda nem tem opinião, "se alguém tem dinheiro para comprar tinta, por que não comprar o reboco antes?".
Mas outro detalhe me chama atenção: as casas nunca têm a mesma cor. Pintar a parede da frente deve ser um modo de identificar onde mora cada família. Aliviada com a engenhosidade (e não a aparente burrice) do povo brasileiro, vamos passando por placas que indicam icônicos lugares (Praia do Francês, Porto de Galinhas), promessas de deliciosas viagens. Isso, é claro, se fosse eu outra pessoa, se estivesse de férias e/ou se recebesse visitas. Às vezes é um ato de Amor Fati imaginar sua vida se você não fosse você mesma.
Neste trecho final, eu me imagino Alexander Supertramp - não rumo à sua morte nos confins do Alasca, mas sim cortando as planícies desérticas na costa californiana, todo tostado sobre um big, Big Hard Sun. Esse jovem extraordinário não temia queimaduras solares... Seja como for, é ouvindo a trilha sonora de Into the Wild, de Eddie Vedder, que chegamos a Natal.
Penso: aqui estou eu, Astro Rei, e mesmo não sendo Alexander Supertramp; sendo mais apegada a esta maravilhosa brisa natalense do que aos vossos raios potentes e perigosos, te admiro aqui da minha sacada, enquanto sigo frente ao computador, fazendo as mesmas coisas de sempre... No fim dessa jornada, minha loucura derretida e domesticada vislumbra Alving e Supertramp enquanto, desfazendo e refazendo as malas, tento imaginar no que Natal será igual, ou diferente, de tantos lugares nos quais já morei.





Fotos de Marechal Deodoro, AL


quinta-feira, 10 de abril de 2025

Loucura derretida. Episódio 3: a velhinha e o Google

Desde os tempos de Jesus, o terceiro dia é o que paga a pena. A tensa atenção inicial, por andarmos em estradas completamente desconhecidas, tornou-se a norma, o hábito relaxado (tanto quanto me é possível...), o convite a olhar em torno a nós no trecho Aracaju-Maceió. O Maps, nosso apego seguro nessa longa jornada, afinal errou, e por graça da Fortuna, foi na linda rodovia AL-101 (que escolhemos por ser linda, mas não rápida). Ela interrompeu-se abruptamente em um rio, e foi com surpresa que descobrimos ser o São Francisco em pessoa.
Em água, no caso.
Assim nos traía a longa estrada de estonteantes curvas, um alívio bem-vindo com relação à mesmice do dia 2. Escolada em realismo pessimista, imaginei que a balsa de Penedo tardaria; que teríamos de passar a noite no vilarejo; e a procissão fluvial do Bom Jesus duraria horas, castigando meus ouvidos com a infernal combinação de religião e música alta. Mas mesmo ali, onde se vem ainda muitos peões a 🐴 , o tempo já não é propriamente o das carroças... Mesmo ali, onde os velhos passam a tarde sentados na calçada (como que especialmente situados para informar aos viajantes perdidos onde era o cais da balsa), nas estreitas e coloniais ruas em que mal passa um carro, é fácil cruzar o rio com uma balsa motorizada.
Gostaria de dizer que o Google não açambarcou esse povoado de outros tempos, mas, uma vez que a velhinha corrigiu nossa rota, o app nos levou até lá sem maiores dificuldades :(...
Não sei como há quem consiga ser romântico nesse mundo de controle 24/7... Dá saudade de seguir o dedo indicador de alguém ao invés da setinhas eletrônicas? Meu self tecnofobico não gosta de máquinas, mas, sem elas, não estaría ali mirando a bonita paisagem, nem perguntando pra gente.
Não sei o quanto de afeto se perdeu com o mapeamento do mundo, nem o quanto de tempo se ganhou com a assombrosa eficiência nos trajetos. Tempo para maratonar séries? Pergunto-me, e as vivências já não me entregam respostas fáceis.
Certamente, não amo a voz monótona do GPS que nos guiava em uma viagem quase sem surpresas em meio a caminhos totalmente desconhecidos. Mas desconhecer o caminho e estar perdido são duas situações totalmente distintas.
Ponto para quem nos vê sobretudo como entidades em busca de evitar o sofrimento - ainda que os prazeres ganhos sejam muito mais fugazes do que o de avistar amáveis velhinhas na calçada.
Esse foi o dia de interações inesperadas: também com o professor do instituto Federal de Brasília que viajava de férias com seu filho; e com alguns jovens com quem compartilhamos a deslumbrante vista do Mirante do Robalo. Queria saber porque esses contatos não duram: ninguém troca contatos como na era pré-Google, nem investe tempo em conhecer os outros; deve ser porque, no pior dos casos, é possível bater papinho com o ChatGPT. Aí, vale o perdão para os que não sabem o que fazem, mas não para os que desistem de saber...



































domingo, 16 de março de 2025

Loucura derretida. Episódio 2: Odisseia baiana

 
Não adquiri novos truques de direção, nem mesmo me tornei excepcionalmente capaz de aguentar o volante por um longo tempo de viagem, pois eu e o Edu revezávamos sempre que batia o cansaço. A Bahia é uma gigante, e atravessá-la no tempo das mulas devia ser feito digno das epopeias...
 A memória dessa travessia, pelo menos do oeste do Estado até Feira de Santana, foi a de uma interminável pista simples, sinuosa, traçada entre pequenos vales e morros que nos forçavam a manter a atenção, como que para remendar o tédio ao cortar enormes vazios populacionais. 
Um enorme vazio de gente repleto de vida de outros tipos. 
Na região da Chapada Diamantina, bonitos fragmentos de mata mais ou menos virgem abria um caminho entre plantações meio desencorajadas, um pouco tímidas, com raras cidades, que compõem agora a minha imagem do interiorzão da Bahia. 
Vibrando e esperançando com a totalização dos votos para presidente em 2022, eu idealizava a Bahia como o verdadeiro mar de gente que se vê no Carnaval de Salvador. Talvez, grandes grupos de capoeiristas em guerra contra o fascismo. 
Mas a Bahia que eu agora vi é mais a de Torto Arado do que de Capitães de Areia. Ou a Baía de Canudos, da Revolta dos Malês. De Tereza Batista. Terra de insurretos, mas que agora apareceu-me apenas como uma sequência de borrões verdes, carros à frente e atrás, postos de gasolina malcheirosos, povoados com pequenos centros históricos mais portugueses do que Portugal talvez se saiba. Paramos em Brumado para o almoço: a atmosfera é idêntica à das cidades históricas mineiras.
Não sei se a ideia de extrema pobreza se aplica aqui. Pelo menos não como me represento esse conceito, seja pelas vidas secas de Graciliano Ramos, seja pelas vidas poluídas dos bolsões de miséria do ABC paulista (meu tio morava em São Bernardo do Campo. O caminho para a casa dele abria-se em meio a Diadema, Heliópolis e as favelas construídas sobre morros gigantes de habitações precárias; os tijolos expostos rivalizavam com o gigantismo dos arranha-céus, parecendo dizer-lhes: "nós sim desafiamos a gravidade. Construímos para vocês com o sólido concreto e o bloco bem assentado, depois voltamos para nossas casas de madeira, zinco e plástico que não é briga nem contra a violência da chuva, nem a do Estado.."). 
Nesses povoados e habitações na beira de estrada, alguns talvez sejam de pau a pique, mas há os raros barracos abandonados, talvez como um sinal de esperança de que a vida de alguém tenha melhorado o suficiente para ele se tornar desnecessário. 
Fomos premiados com um alívio cômico ao final do interminável segundo dia de jornada: em uma das pequenas cadeias montanhosas da zona rural de Itatim, em certa zona de tráfego intenso, vimos uma enorme pedra em formato de pênis. Imagens não faltam na internet: o nome é Pedra do Constrangimento. 
A injustiçada formação geológica só pode ter sido batizada por políticos cristãos: o povo baiano tem, certamente, apelidos muito mais criativos e sem censura.
Foi, pois, em estado de "ereção cósmica" - como diria minha professora de antropologia, Salete Alberti - e enervado cansaço que conseguimos descansar os ossos em um hotelzinho bastante decente de Feira de Santana. Sonhando uma Bahia que tenha muita, mas muita gente para 2026...
Pedra do Constrangimento, Itatim, BA
Pedra do Constrangimento, Itatim, BA


Rio São Francisco, na altura de Bom Jesus da Lapa




sábado, 8 de março de 2025

Loucura derretida. Episódio 1: o amigo do Raul

Minha autoimagem é de uma pessoa quadrada, monótona, que não faz nada de errado nem sabe dar jeitinho em coisa alguma. Mas certamente tenho minhas pequenas loucuras: vir para Natal desde Goiânia de carro, tendo por objetivo principal servir-me da cachorrinha e do carro para este pós-doc, foi a mais recente. E também a primeira experiência do gênero, já que não curto dirigir e tenho medo de estradas desconhecidas. Medo e curiosidade, na minha psicologia particular, são um par sempre às turras um com o outro - e a curiosidade venceu, junto com a avaliação da razoabilidade desta pequena loucura. Em mim, a razão sempre vence...
Meio que enlouqueço o pobre Edu, com microataques de pânico até a partida, que perduram até o segundo dia de viagem. Dividimos os 2638 km em 4 parcelas: dia 1: até o oeste da Bahia; 2: até Feira de Santana; 3: até Maceió; 4: até a almejada Natal.
As surpresas foram diversas das que me atemorizavam: pneus exemplarmente cheios, nenhuma multa, acidente; um único erro no Google Maps. O mapa físico que comprei para alguma contingência inesperada agora é peça do museu doméstico, junto com o aparelho de DVD e o gravador de fitas K-7. Bem está o que bem acaba, ou o que começa deixando memórias tão fortes, embora, no fundo, nada loucas.
Reavalio minha classificação de loucuras. Classe média não faz loucuras: loucura seria cruzar o Brasil no pau-de-arara, com crianças, a pé ou de bicicleta; migrar sem local ou objetivo definido, como meu bisavô Frederico (que caiu no mundo até, ao que parece, chegar à mendicância), não esta minha, a de fazer centenas de km em uma SUV seminova, com bolsa térmica forrada de gelo falso que refresca água verdadeira.
Fico tentada a dizer que as loucuras ficaram do lado de fora, nos lugares por onde passamos: nos sinais de eras passadas, nos cavalos que são meio de transporte DE VERDADE (especialmente na Bahia e no Sergipe); nos sinais de pobreza sem esperança de melhora, dos vilarejos cercados por centenas de quilômetros de terras sem intervenção humana (e também, sem empregos visíveis), feitos de ruas tão destruídas que fica difícil saber se, para atrapalhar o trânsito, alguém abandonou pedras na rua de areia, ou se simplesmente a rua era calçada com pedras que foram desaparecendo, até que o buraco predominasse; nos vilarejos com uma praça central onde jovens e velhos fazem footing desviando da bosta de cachorro, ao longo do principal rio da região (um triste, fedorento esgoto), e onde se vê, ao fundo, um tanto quanto deslocada, uma bela ponte que deve datar dos governos Lula I ou II.
Rumo à bela cidade que seria nosso destino final, passamos por lugares onde poucos vão voluntariamente, como esta cidadezinha baiana que se preparava para um alegre carnaval. O Google Maps continuava nos mandando para a rua principal, toda ela interditada para os foliões, e pela qual só passamos após explicar aos servidores que éramos viajantes e não havia outro meio de chegar ao hotel.
Uma pessoa que eu quis conhecer, mas não pude, era um artista hippie expunha seu artesanato em uma kombi aberta, tocando Raul Seixas em volume muito alto. Ele sorria. Nem parecia querer outra vida. Ouro de verdade também é Ouro de tolo, o velho Raul poderia dizer. Entre a SUV e a velha kombi, quem seria o insano?
Repensando as cenas daquele dia, penso qu não há loucura alguma em viver nas ruas indecisas entre a pedra e o buraco. Viver um romance na orla do esgotão pode ser tão lindo quanto no Hudson River Park; e a humanidade andou a cavalo por muitos milênios mais do que em carros seminovos.
Viajar foi sempre um meio de me conhecer, e (re)descubro, conformada, que isso jamais vai se concluir. Enquanto eu não descobrir, como os amigos do Raul, qual o sentido da vida, partes de mim espalhadas em todos esse mundo desconhecido, prossigo, dividida entre o Corcel 73 e a pipoca dos macacos.










Foto: Eduardo Carli

terça-feira, 16 de junho de 2015

Meu miniconto publicado: "Paralisia"


Leiam-no na Revista Literária Benfazeja



---
Minha espera chega ao fim. Somos presa e predador. Fora isso, o túnel escuro da noite infinita.

Ruído de tranca se abrindo, o predador saía. Minutos depois, voltava. Teria encontrado outra vítima em seu perambular? Se me encolhesse no mais absoluto silêncio e escuridão, talvez ele se contentasse com um golpe, ou um cagalhão pelo caminho (apenas para registrar passagem, depositar sua merda no seu território). Mas se ele já estiver faminto, pequenas alegrias não lhe servem. Presa, eu já não discernia a segunda do sábado, reclusa na cela, de cujo exterior conhecia tão pouco; trilhas nas quais minha imaginação teimava em caminhar, percebendo que os pés já não costumavam ir longe, próximos da cerca imaginária tão impossível de pular como uma ordem de execução do Juízo Final. Eu nunca o vi matar, mas sei que morrerei – e, a primeira de suas presas, vejo sua falta de habilidade: lentidão, excesso de golpes, mordidas e arranhões a esmo, qual filhote de leão ainda brincando com filhote de zebra. Também sou inexperiente em morrer, penso eu. Tenho tentado fazer minha parte, mas é difícil esquecer o pânico, me mexer um pouco que seja. Eu estou nele, ele está em mim. Logo, só eu estarei nele, e um pouco mais tarde, não existirei mesmo dentro dessa forma tão abjeta.

Em outros casos, uma blasfêmia poderia acelerar a execução: grito que Deus não existe, que a Bíblia é um livro de maldades, e ele acabaria com isso – mas ele já não consegue fingir que se importe com essas coisas. Vive por meio da crença em sua força e direito; eu, da fé na sua ferocidade. Quase morta, eu não existia por mim mesma, mas só por meio dele, como seu destino e presa. Grande como é, ele exercerá sua vez na cadeia alimentar ainda muitas vezes; eu não tinha tempo para conjeturas, verdades, explicações, pois estava prestes a cumprir o nosso acordo darwiniano; pacto de sangue, inscrito em minha genética como objetivo da genética dele; acordo mais sagrado que todas as leis criadas por todos os homens. Tão natural quanto racional, esse pacto adivinha-se nos seus vis olhos triunfantes, que eu vejo embaçados pelas muitas lágrimas que trocamos. Quem sabe, a piedade não lhe entrou no coração? Quem sabe, ele não cai morto por um raio ou pela lepra? Quem sabe, o Exército Vermelho não entra triunfante, como se esse lugar fosse Berlim, 1945? Quem sabe, o Papa não telegrafa para Ele, pedindo Paz na linguagem dos lobos? Quem sabe, eu receba clemência do governador do Arkansas, que nem vive a tantos zeros longe de nós? Nas peças antigas, eu poderia dizer minha última fala ou fazer o meu último gesto, e o Deus Ex Machina sairia de seu andaime com asinhas de papel, antes que o pano descesse e o suave sono voltasse às minhas pálpebras alarmadas pelo ir-e-vir do predador nesta noite (in)comum.

Mas predador que se preza não gosta de filmes ou peças: na sua ignorância animal, elas são representadas apenas pessoas da espécie inimiga, seres estranhos fingindo ser o que não eram. Ele pensava ser o que era, mas às vezes eu sentia que ele também representava, mostrando os dentes como quem imitasse os cavalos ariscos familiares à sua infância. Como prezar um mundo de fantasia à margem da densa crueldade? Ou mesmo dos monstros diabólicos, da negação do prazer suave pela utilidade bruta; do trânsito incessante de um quarto para o outro em busca de saciar o estômago antes de um sono pesado e sem imagens? Não foi frequente, mas cheguei a intuir uma vaga esperança: a de conversão de presa em parceira de suas peregrinações – e aí, nos associaríamos em cooperação ou simbiose (um cúmplice, um lambe-botas, um assecla, um filhote de predador, talvez). Mas seria tão impossível quanto pedir à jararaca que se amigasse ao rato. Somos de espécies inimigas, e nossa mistura seria uma aberração.

Prezamos a ordem das coisas mais do que nossas individualidades em particular. Arrepiam-lhe os pelos, que parecem intensificar o cheiro de meu temor, que, por sua vez, eriçam-no ainda mais. Esta é a minha hora (e nem um lambari frente a um cardume de tubarões temeria tanto); sei quando ele dá outros dois passos em minha direção. Lá fora, a noite escura apita forte, no ultrassom mais agudo que todos os agudos perceptíveis pela minha espécie: era o Nada (o túnel escuro da noite infinita? O deus da Morte nos subúrbios do meu coração? Meu pensamento continua apalpando as paredes dessa cela, à cata do tijolo podre pelo qual sairá, liberto dessa carne condenada. Tendo à grandiloquência, talvez apenas porque Ele, o Predador, tenha a mente selvagem demais para compreendê-la, satisfeito com a efêmera orgia do sangue ainda circulante em minhas veias.

Se Ele não se saciar... a fome voltará, e são três as opções: A) morto o apetite dele, eu estarei por aqui, cadáver exposto aos urubus que terminarão o serviço começado; B) apenas um de meus braços ou pernas servirão por hoje. Mas, amanhã, voltaremos à opção A; C) hoje ele me devora completamente.

Não imaginem que desisto: gritarei, mas será inútil; não há Salvador: só as doze crianças e o atirador de Realengo; Marion Crane e Norman Bates, Jesus e os centuriões; 6 milhões de judeus e Hitler. No ínfimo instante desse relato, ali sempre estará Ele. E ali também os seus ossos, que são da cor dos meus; os seus dentes de fera falsamente ultrajada, como se fosse eu o cordeiro que lhe suja o córrego das veias profundas e não ele que me contaminará com sua mordida. Eu lutarei, mas não conseguirei rompê-las, e, prazeroso, ele lamberá as feridas dessa batalha quase cômica na sua pequenez e banalidade.

Não sei se somos macho ou fêmea, mas isso não importa, pois se trata de carne. Seu andar pesa como o seu porte e vejo até cabelos entre os seus artelhos onde caem gotas de baba. Mas só vejo o túnel escuro da noite infinita, com mais vácuo do que planetas onde morar e presas para se comer. Ele está a dois míseros passos de mim.

Minha última esperança lança um olhar para a porta; e, custando a desarmar-se, convida-o timidamente para brincar. Seus olhos não me sorriem – antes, debocham. Não me atrevo a proferir palavra diante dos dentes que há tanto tempo roeram o osso da misericórdia. Vejo suas pupilas se dilatarem – desprezo, asco, “Venha, ser imundo, para que eu dê o bote final”.

Inútil espera, pois eu não vou até ele.

Nem volto para mim. 

Gisele Toassa
Nasceu em Bauru, coração de São Paulo. Literatura é sua paixão, mas ainda não publicou nada. Fez psicologia, fono e segue carreira acadêmica na UFG (talvez por amor à leitura ou falta de imaginação). Passou por São Paulo e Toronto, mas atracou em Goiânia. 
Segue
facebook.com blogspot

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CICLISTAS, OS MUÇULMANOS DO TRÂNSITO: reflexões sobre bikes e a carrolatria




Mobilizada pelas más notícias sobre o clima, comprei a bike há mais ou menos um mês.

Não tardou que começasse a perceber a cidade de uma forma bem diferente, com novos medos, satisfações e indignações. Hoje percebo os danos da carrolatria na vida das pessoas e no espaço público. Vou explicar um pouco pra vocês.

Primeiro, as indignações. Se você, ciclista, se mantiver à esquerda, por não conseguir atravessar a rua congestionada, ou precisar virar (os motoristas mais irritáveis nunca relevam os seus motivos), muito provavelmente tomará buzinadas. Mas se andar pela direita em avenidas, em horários de pico, também tende a tomar buzinadas. Como todo signo, elas veiculam uma mensagem: "sai da frente! Foda-se! A rua é minha!". Sem escudo, você sente a buzina no seu cérebro. Em muitos casos, não tem onde se espremer, o que dá um pânico - e o pânico é totalmente contraindicado, pois o estado afetivo interfere diretamente com sua atenção e autodomínio, processos mentais fundamentais para um ciclista. Esse egocentrismo de muitos motoristas, em minha opinião, tem a ver com duas coisas:

1) o fetiche do carro: não somos nós que dominamos o carro, o carro é que nos domina. O carro te dá um acelerador fominha, feito para queimar o máximo de combustível possível. Um Celta velho dá fácil 120 km/h, mas você é obrigado a andar numa média de 40 km/h. Atrás de um ciclista, você faz 20 km/h, com sorte. Por isso, não importa tanto onde ou como o ciclista ande, mas sim que ele (in)exista - o ciclista é o muçulmano, o indesejável do trânsito, pois é a lembrança de uma era lenta que a carrolatria abomina. Embora, em muitos casos, o motorista fique muito mais tempo parado do que um ciclista - frustração contínua que também convida à braveza e à selvageria contra todos os outros seres humanos que ocupam a tua mesma avenida minúscula.

2) efeito "zip lock": dentro de um carro, sua percepção se reduz drasticamente (quando o motorista te taca a buzina, ele pode mesmo não perceber que você não tem área de escape). Fechado na sua bolha climatizada; ouvindo sua música ou falando ao celular; sentindo a ilusão do controle, o motorista-consumidor é um rei a caminho de seu palácio, para quem a feia cidade passa (deve passar) rápido. A bolha traz distrações nela mesma, o que talvez explique nossos muitos acidentes de trânsito. Mas todos sabem que distração significa colisão e o motorista não pode se dar ao luxo de olhar, parar e processar o que olha - uma vantagem inestimável de caminhar ou andar de bicicleta.

Um motorista mapeia a cidade pelos locais de estacionamento - daí que a era dos carros seja a mesma dos shoppings. Um ciclista constrói um novo mapa cognitivo da cidade. Torna-se sensível às mínimas oscilações do terreno, ao comércio local e mesmo à generosidade humana - ou à falta dela. Enquanto alguns quase batem pra te deixar passar, outros tiram fina da tua bike pela mais pura maldade. Ou por não perceberem que, ali, vai uma pessoa com tanto direito à cidade quanto eles.

Em nossa cultura, carro virou poder. Sinto um tédio imenso ao ver quanto tempo um ser humano (em particular, do sexo masculino) é capaz de falar de carros. Se você fica sem assunto com alguém, é só falar do tempo ou de carros, esses equivalentes universais. O carro atrofia a imaginação e fomenta a inveja. Quanta gente não vende as calças só para ter um? Até tua vida sexual depende dele. Como diria o Mundo Livre: sem carro, seus testículos viram um saco. Embora, com ele, você tenda à hipertensão, diabetes e obesidade pela falta de exercício - fora a preguiça, que é bem mais difícil de mensurar. E aí você vai ter que ir de carro à academia ou ao clube, pra não ganhar em gordura o que perder em saúde. Esse é um exercício socialmente aceitável, pois é pago, classe média/alta e devidamente autista - andar de bicicleta em dias da semana, na rua, é coisa de pobre.

O elemento parasítico do carro está em que, usando-o, nós consumimos a energia do planeta e não a nossa própria. Enquanto o ciclista se pergunta se tem fôlego e segurança pra ir a tal ou qual lugar, o motorista pára ao lado da bomba de gasolina e saca seu cartão mágico - ou sua arma ecocida.

Não me levem a mal. Eu tenho um carro. Ele sai da garagem umas poucas vezes por semana, quando não dá pra ser de outro jeito. Mas estou gostando um bocado de viver de bike. A bike te faz lutar incessantemente pela tua vida, já que a três por quatro você pode ir engraxar a rua ou as poderosas rodas de alguém. Faz suar muito e te expõe ao mundo - leia-se: à temperatura - real, mas, ao mesmo tempo, tem um valor ético que essas máquinas estúpidas às quais nos apegamos é incapaz de nos dar. Ainda vai chegar a hora em que os psicólogos vão usar as bikes em terapias contra o medo. Se você tiver um pouco dele, ou quiser tentar um novo modo de vida, vale a pena....

sábado, 21 de junho de 2014

Prefácio ao deus dançarino

(Ao K.)
Eu não sei dançar
Mas nalgumas noites
Tento meus passos
Alinhando a ginga
Dessas juntas quadradas

Eu não sei sorrir
Mas todos os dias
Junto meus cacos
E crispo meus dentes
Na mímica física
Dos que já pouco sentem

Eu não sei pensar
Mas todos os dias
Aperto a testa
E ponho os óculos
dando grau à loucura

Eu não sei amar
Mas todas as noites
Dôo meu corpo
Doído de estresses
Ao teu confiante sono

Eu não sei dançar
Mas todos os dias
Minhas orelhas vibram
No compasso da tua voz
De menino-homem, semideus-dançarino

Viúvo de Deus, mas amante dos sonhos
Teatro de Dioniso (Atenas, Grécia. Eu acho.)

quarta-feira, 7 de maio de 2014

MIA COUTO E O SER-LEOA

IMAGINE uma ínfima aldeia de um país muito pobre, chamada Kulumani.
IMAGINE uma mulher que passou sua vida toda nessa aldeia, Mariamar.
IMAGINE que ataques de leões estão matando apenas - e tão-somente - as mulheres nessa aldeia, fazendo da irmã de Mariamar, Silência, uma das suas vítimas.

e você terá o cenário da "A confissão da leoa", do moçambicano Mia Couto, nosso compadre nos infortúnios da colonização portuguesa - autor único na fragrância animista do seu português. Para quem nunca teve o hábito de ler folclore, mas ama a mistura popular-erudito, esse livro é uma sólida introdução para o modo-de-vida, o modo-de-fala - e, mais do que tudo - para o cruzamento (fascinante, perigoso?), entre religião e costumes de uma nação escravizada até muito pouco tempo. Somos irmãos na opressão. Também somos irmãos na desigualdade e na linhagem da nossa América Latina, que, como a África, soa para mim mais feminina do que a Europa.

"Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada.Ao inverso,quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar." (p.15)

das mulheres nascidas e finadas em Kulumani sobra pouco rastro, habituadas que eram ao silêncio e às sombras. "Pobre Kulumani que nunca desejou ser aldeia. Pobre de mim que nunca desejei ser nada" (p.50). Nascida em uma aldeia do interior de São Paulo que, por acaso, hoje tem 300,000 habitantes, senti em Mariamar uma verdadeira irmã espiritual. Como eu sonhava com o Príncipe Encantando, ela sonha com o caçador que, trouxera, com um olhar, a vida ao seu corpo de sombras (dei de cismar que a opressão não é preta nem branca - é apenas uma sombra que inunda nosso espírito com uma antecipação do irremovível Nada). Seu silêncio é uma percepção do feminino como infantilidade adiada, feita de esperas: espera por um homem, pelo Salvador ou por um outro ser vivo que lhe agitará o ventre, vindo por certo tempo se abrigar na sua (inviolável) sombra; três esperas tão silenciosas quanto necessárias para que a renovação dos capítulos dessa nossa trágica Comédia Humana.

Eu só faço admirar a destreza na escolha dos personagens (parece a mecânica perfeita de Ibsen); os seus nomes que rompem a fronteira do hábito para nos transportar a esse universo onde não veremos a pobreza (como falta), a doença (como atraso) ou a violência (como mal do caráter). A África de Couto é a África vivida e padecida como dores universais. Quando Arcanjo Baleiro, o caçador, junta-se ao escritor e ao administrador para matar leões em Kulumani, entra em cena também Naftalinda [!], a gorda mulher do administrador, a única que faz ouvir sua voz - tal como a Lua no céu, oprimida por astros mais significativos, mas ainda viva. Agora que aprendi a necessidade do feminismo como luta contra as pequenas e grandes guerras (desde a depilação até a ocupação da Ucrânia), posso admirar essa mulher que tenta falar pelas suas companheiras. Mia Couto é um grande feminista, por se ocupar da história dos vencidos, sejam as mulheres ou os leões: "Até que os leões inventem as suas próprias histórias,os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça." Provérbio africano - MIA COUTO, A confissão da leoa (epígrafe) – p.11.

Paralisia, mudez completa, são alguns dos sofrimentos com que a pequena Mariamar defronta-se. É um jeito de amurar-se a si mesma; sem andar ou sem falar, ela deixa de realizar atos que pouco importavam a alguém. Debaixo de sua imobilidade, há lembranças de um avô amoroso e de uma guerra sangrenta, onde os africanos foram as presas. "- Aconteceu o mesmo no tempo colonial. Os leões fazem-me lembrar os soldados do exército português.
Esses portugueses tanto foram imaginados por nós que se tornaram poderosos. Os portugueses não tinham força para nos vencer. Por isso,fizeram com que as suas vítimas se matassem a si mesmas. E nós, pretos, aprendemos a nos odiar a nós mesmos." (p.120)

Esse é um livro sobre morte-em-vida, vida Severina, mas também sobre um encarceramento sem paredes, o de ser-Colônia e não se governar. Os majestosos leões vão ficando à mercê dos homens, e os homens, presa dos outros homens, ficando as mulheres na última ponta da cadeia alimentar, onde viram comida - literal e metaforicamente - recebendo na cabeça e no corpo uma dominação multiplicada. Seus mortos nunca foram realmente enterrados. Sua revolta não tem espaço para crescer, pois se acostumou ao silêncio e à força: se não dão, lhes tomam. Mas os livros são aventura certa para além desse mundo restrito onde a tarefa vital é abrir as pernas e fechar os olhos, ou apenas levar água no balde, do poço à casa: 

"Kulumani e eu estávamos enfermos. E quando, dezasseis anos, me encantei pelo caçador, essa paixão não era mais que uma súplica. Eu apenas pedia socorro, em silêncio rogava que ele me salvasse dessa doença. Como antes a escrita me tinha salvado da loucura. Os livros entregavam-me vozes como se fossem sombras em pleno deserto." (p.95) 

tal como nós e os moçambicanos, Mariamar mostra que silêncio e loucura não são estranhos, mas parentes próximos. É por isso que vou colocando Mia Couto na minha prateleira de autores queridos, desdes que são curativo para a alma, e instrumento para a luta. 



Facebook

Total de visualizações de página