sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Eu queria ser Fernando Pessoa

Dormiria meio bêbado, debruçado sobre uma resma de poemas incompletos. Desacordado sobre certa explosão em que não trabalhei por inteiro, pois os versos do meu abraço forçaram a porta na hora crepuscular em que pensar e não pensar é o mesmo. Acordando lentamente, pareço um outro olhando pelos meus olhos, esbugalhadas búricas de um gajo introspectivo, a pentear comportadamente o bigode porque os cabelos se escondem debaixo do chapelinho. Meus neurônios seriam fiozinhos assustadiços, mirando Campos e Caeiro a palestrar em seus trajes de bourgeouis e de pastor, até que, lentamente, reconhecessem naqueles gestos o melhor de sua bioelétrica. Tanta felicidade só caberia em um coração de criança! Eu me apagando, lentamente, como no livro de Saramago, aquele em que Ricardo Reis sabe que morrerá, pois Pessoa já se foi. 
Se fosse Pessoa, eu teria noivado a jovem Ofélia, e aborrecido ficaria por ouvi-la tratar de vestidos, ou da bursite de tia Zezinha, e planejar filhos. Tal atividade não é para os castos seres que nem mesmo descalçam a botina acompanhados de alguém. Ora, então? Melhores que os filhos sejam talvez os amigos imaginários, pois eles tem vida própria, não nos reviram os bolsos à cata de centavos, nem os pensamentos buscando conselhos impossíveis, torturas quotidianas da carne e do espírito. Pessoa! Ah, se fosse tu, eu desejaria vida social tão intensamente que não toleraria os seres humanos, e com Campos compartilhava o hábito de meio invejar, meio desprezar, a pequena que comia chocolates do outro lado da rua. Não saber comê-los com tanta verdade seria a menor de meus infortúnios, pois meu coração inquieto carregaria toneladas de lírios, lírios e rosas, batendo arrítmico com o ruído do esfregão de Maria, a dona que me limparia o quarto  enquanto o desejo de solidão não sobrepujasse o de asseio. Solteirões como eu, amigos da contemplação, lá estariam, imunes ao tempo, palestrando horas com gostosos bolinhos, sem a atividade mais antissocial do aparelho digestório. E, como acadêmicos sem vaidade, perguntar-se-iam se há niilismo em certo versejar de Caeiro: "O único sentido último das coisas/ É elas não terem sentido nenhum", ou se Campos não teria trocado a rapariga inglesa pelo infinito spleen dos paquetes. E eu, se fosse Pessoa, fitá-los-ia com o encanto de quem se sabe modesto artífice, fresh and blood onde se hospedavam aqueles gigantes, mestre anônimo de títeres extraordinários, feitos para e pelo seu único espectador. Eles iriam rodar o mundo, e eu, qual Penélope, ansiaria pelo reencontro, por colher as estórias novas - não, não, novas não! Histórias novas são carreiras, atropelo, o essencial e o secundário estupidamente espremidos na mesma botija; quero as histórias envelhecidas, aquelas que já sentaram praça nas lembranças do contador, que, pudico e abismado, pode narrá-las em versos enigmáticos, como homem maduro a esconder suas vergonhas e substituir por reticências monótonos pontos finais. Pensando bem, imaginá-los palestrar será ainda melhor, pois diante do menor sinal de contrariedade, ou frase mal amarrada, não os veria em vexame, fá-los-ia trocarem cartas, e sobretudo examinarem-se os poemas, que esses podem ser de dúvida ou desespero, sobriedade e lirismo, e viveríamos - Pessoa, Campos e Caeiro - como se fôssemos um, a humanidade nunca-jamais imaginou trio assim tão bom.  

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Prótese cardíaca

Às vezes precisamos de um coração maior do que aquele com que nascemos. É a utilidade da poesia: ser prótese cardíaca
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Os intelectuais são seres que sofrem com a cabeça,
e pensam com o coração
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O chá no copo
Os quilos no corpo
O olho no olho

Amigo sincero:
na mão espalmada,
a flor tatuada

As canoas seguem o rio,
o rio segue oceano
oceano segue oceano

Conhecidos novos:
máscara facial,
de tédio real

Amante antigo
Bitoca frôxa
Orelha rôxa

Opinião socialista:
escorrega dos lábios
do arrivista

(Hai kais que resolveram escorregar de meu baú)

sábado, 26 de novembro de 2011

Blogs dos meus alunos

Olá, pessoal!
Como parte das atividades de Psicologia da Educação II na UFG, dois grupos de meus alunos estão mantendo blogs sobre ensino de ciências, com posts, links e outros materiais.
"Bloco F" é o da Química, http://oblocof.blogspot.com/ e "Dinpa", o das Ciências Biológicas, http://dinpa.blogspot.com/.

sábado, 19 de novembro de 2011

Uma grunge na colônia

Então, estive nesse Congresso. De um ponto de vista antropológico, sempre me interessou essa ordem social composta por professor@s de pós-graduação e seus grupos de pesquisa, alun@s que, como abelhinhas, esvoaçam ao seu redor, ansiando por agradar. Sessões de comunicação com um público variando de 15 a 30 pessoas, grupos rivais bastante territoriais. Certa pessoa da platéia demonstra preferência por autor rival, e ess@s alun@s imediatamente declaram a preferência por seu próprio autor e, tal crianças frente à figura de apego, olham imediatamente para a líder em busca de aprovação.

O fator sobrevivência, em muitos casos, é o que mais pesa. Em áreas de pobre empregabilidade, tornar-se professor universitário é bastante sedutor. Muit@s enfrentam anos de longas viagens, com bolsas ou empregos que @s mantêm nos estritos limites da sobrevivência, chegando a misturar a jornada de chefes de família, trabalhadores e pós-graduandos. E, ainda por cima, são obrigados a inserir os nomes de seus orientadores em pesquisas nas quais eles não contribuem.

Muit@s orientador@s não tomam conhecimento desse cotidiano dos pós-graduandos, sequios@s por multiplicar seu poder de estilo colonial, tão longe da democracia quanto a USP está hoje - a principal universidade brasileira ´está vergonhosamente escorchada pelo seu próprio reitor, forte indício de como nosso Estado, e consequentemente, a produção de conhecimento, organiza-se.

Nesse Congresso, chamou-me a atenção o tom de voz áspero e grosseiro de uma orientadora em particular, sua ansiedade por satisfazer os pesquisadores estrangeiros e demonstrar seu domínio intelectual sobre um pequeno grupo de orientandos que variava da vulnerabilidade a uma silenciosa resignação. No cúmulo da loucura, tem-se uma preocupação obsessiva com a ortofonia e a ortoteoria: como se pronuncia tal nome? O que tal autor realmente quis dizer? E que tem lá seu fundamento, pois se faz em um contexto no qual - cientes do fato de que são poucos os que dominam idiomas herméticos (como russo e alemão) - muitos intérpretes alteram o pensamento dos mestres estrangeiros a seu bel-prazer. Malefícios da Universidade pensada fundamentalmente como local de tradução e interpretação, na qual os recursos para pesquisa são invariavelmente escassos.

Essa coisa toda é meio colonialista e me chama a atenção para o fato de que o tamanho dos grupos varia proporcionalmente à simpatia do orientador, e os indivíduos realmente sociáveis e humanos constituem grupos amplos, plateias que acabam devotando-lhes verdadeira adoração, elemento que ocasionalmente serve a quebrar os muros Universidade-sociedade e servir a boas causas.

Mas, falando no geral, ess@s orientador@s, restritos ao seguro ambiente acadêmico, marcam-se por uma notável falta de realismo. Ressalto o momento no qual estava em pé dentro do ônibus que levaria os congressistas para o centro da cidade, quando entra uma figura importante da psicologia nacional - a qual não me conhecia - entra e diz, com um tom de quem há muito tempo não ouve uma frase negativa: "vão indo!".

Mas não dava. A Universidade brasileira é mesmo um busão lotado, mas com ar condicionado.
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Intelectualmente, vejo problemas nessa organização. Lembro-me de um Manifesto do Miguel Nicolelis, em que ele critica a hierarquização da universidade brasileira, comentando que no exterior você tem o dever de defender teses originais e criar conceitos. Pensar de modo criativo demanda cooperação e liberdade. O amor às hierarquias acabou gerando certa estagnação na produção intelectual, pois os grupos preocupam-se muito mais em não ofender mutuamente seus orientadores, que por sua vez preocupam-se em ser nutridos por seus contatos internacionais e em não romper (ou não azedar por completo) as alianças com grupos nacionais.

Também eu, é claro, carrego em minha consciência nossa história de colonização. Mas tive a boa sorte de que minha primeira camada 'metropolina' tenha sido feita de Nirvana, gestada nos terríveis subúrbios de Aberdeen e não nas fulgurantes luzes de New York. E quando me lembro daquele pequeno grupo da orientadora de tom áspero, se me evoca esse grande clássico de Kurt Cobain, desejando mais do que nunca ter tido a chance de me acabar em uma plateia grunge, perante o meu verdadeiro ídolo de adolescência tardia. Quiçá possa alcançar a integridade, a verve e o amor pela verdade que muitos nunca lhe reconheceram, confundidos pelos caracteres acidentais da heroína e do suicídio:


Nirvana, Serve the servants, MTV [Live]

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Relatório da pesquisa: "Breve análise de orçamento para crianças e adolescentes no Estado de São Paulo"

"1.    Introdução

A LDO 2008, Art. 2, estabelece como metas e prioridades da ação estatal a “I - redução das desigualdades sociais e melhoria da qualidade de vida da população; II - geração de emprego e renda e preservação dos recursos naturais; III - garantia da segurança pública e promoção dos direitos humanos.” (ESTADO DE SÃO PAULO, 2007a, p.5).
Mas será que essas resoluções têm sido realmente cumpridas? Podemos começar um esboço de resposta a esta indagação pela análise do orçamento estadual dirigido à criança e ao adolescente. E pensar nele como um importante termômetro das políticas de promoção da igualdade e justiça social no Estado...  
O orçamento dos Estados é regulado por três leis: PPA (Plano Plurianual – de 4 anos, atualmente: 2008-2011); LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias – Anual) e LOA (Lei Orçamentária Anual, que integra os outros dois documentos, PPA e LDO). Este texto visa a analisar o principal dispositivo orçamentário, cujo papel é integrar e detalhar os outros dois, completando o ciclo orçamentário: a LOA/2008, publicada em dezembro de 2007 (Estado de São Paulo, 2007b). A lei é de importância visceral, embora sua análise conte com uma bibliografia, mesmo eletrônica, surpreendentemente escassa." 


Para conferir o relatório completo desta pesquisa, realizada entre 2008-2009, clique aqui.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Contra a criminalização do movimento estudantil!

Assine a petição: Contra a ocupação militar no campus da USP.

Caros alunos e colegas da UFG:
O que ocorreu essa madrugada na USP foi um terrível ato de barbárie: a PM não tem que estar no campus, e o convênio reitoria-PM expressa bastante bem a completa falta de democracia existente na USP desde a ditadura. O reitor Rodas não foi eleito pela maioria da comunidade universitária, não gozando de nenhuma legitimidade política para suas ações. Com que, então, a PM entrou para "proteger" a todos e, de repente, prende 70 estudantes? Observadores no interior da universidade percebem que havia lá uma busca ativa por usuários de maconha, coisa que a PM paulista não faz em lugar algum. Esse convênio é um ato político de repressão, e não uma ação de segurança.
Estudei na USP na graduação e doutorado, visitei a ocupação de 2007 e fiquei comovida ao constatar o cuidado com que os alunos zelaram pelo bem público, bem como sua coragem de resistir por mais de um mês.
A agressão perpetrada pela PM é um ato que fere não só a comunidade USP, mas também todo o movimento estudantil e, por extensão, outros movimentos sociais - já tão duramente golpeados nos últimos tempos. É hora de desencadear manifestações de apoio aos estudantes da USP e mostrar que estamos mais vivos do que pensa o stablishment.
Gostaria de recomendar a vocês visita às páginas: http://www.facebook.com/DCEdaUSP e http://www.adusp.org.br/# , http://ler-qi.org/,  pois, pesquisando na internet, fiquei profundamente impressionada com a tendenciosidade dessa imprensa que aí está. Não nos deixemos enganar, protestemos!

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Lançamento de meu livro: 6º Congresso de Psicologia UFG/ VIII CBPD

O lançamento ocorrerá nos eventos: 

VI Congresso de Psicologia da UFG: 03/11, às 19h00, Faculdade de Educação, Goiânia, GO. 

VIII Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, Brasília,  14/11 (às 20h00) - no Saguão das Livrarias.

Conto com a presença dos amigos, colegas, alunos, ex-alunos e toda a população mundial que não se enquadre nas categorias anteriores.
Abraço,
Gisele

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SINOPSE DO LIVRO

Acaba de sair de gráfica mais um lançamento da Papirus Editora: Emoções e vivências em Vigotski, de Gisele Toassa.

Emoções e vivências em Vigotski

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Desde a década de 1950 as produções do bielorrusso Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) vêm se tornando conhecidas no debate sobre pensamento, linguagem, desenvolvimento e aprendizagem escolar. Mais recentemente viu-se crescer também o interesse por outras dimensões de sua psicologia, como o estudo das emoções e vivências humanas, conceitos explorados aqui como partes da formação da personalidade e da consciência.

Filosofia, psicologia do desenvolvimento, psicologia da arte e neurociências são alguns dos campos de pesquisa abordados, por meio de reflexões sobre a obra do autor - desde A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, seu primeiro livro, até Pensamento e linguagem, publicado no ano de sua morte.

Buscando respeitar a diversidade e a riqueza da concepção de Vigostski, este livro será de interesse a psicólogos, educadores, artistas, linguistas e outros simpatizantes do legado desse autor.

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288 pp.
R$ 59,90
 
Abraço, 
Gisele
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"Nada estimo mais, entre todas as coisas que não estão em meu poder, do que adquirir aliança de amizade com homens que amem sinceramente a verdade" (Espinosa)

sábado, 8 de outubro de 2011

domingo, 2 de outubro de 2011

Um fascista consequente? Sobre "Tropa de Elite II"

Obs1: se você não tiver visto o filme, não leia esse post.
Obs2: é sério.
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Assisti ao Tropa de Elite II (um ano depois de todo mundo, seus novidadeiros escravizados!) e senti um gosto-desgosto parecido com o do Tropa de Elite I. Um aluno me abriu os olhos para o aspecto blockbuster do filme - aquele hip rock da trilha sonora, enquanto Nascimento atravessa os pavilhões de Bangu I, certamente era dispensável. Fora as fotos tétricas, que mais te lembram uma porcaria qualquer do Schwarzenegger. Nada mais tosco; e o Padilha bem que poderia ter tido um pouco mais de cautela com a fácil leitura reacionária do filme. Mas ainda penso que a película é mais arte que indústria cultural, na proporção de 70 para 30%.

Por enquanto, vou morar no meu gosto-desgosto sem esperar resolvê-lo, enquanto tratar do filme como obra de arte. É claro, como tese sociológica, a coisa muda e falarei disso mais adiante. Lembra um pouco o Orwell, só que menos inteligente (ou livre). Cumprimentos ao diretor José Padilha: somente o equivalente cinematográfico de um Baruch de Espinosa ou Antonio Gramsci, para meter a colher em um tema desses.
Minha simpatia pelo Capitão Nascimento - promovido a coronel - não aumentou. Torci por ele, de fato,  pois o enredo te leva a isso, mas encaro com frieza esse mote americanófilo do herói-pistoleiro-solitário, a versão moderna de Kant, o homem que se entrega completamente ao cumprimento de seu dever. Continuo a identificar no Nascimento o que o Lênin, se vivo estivesse, talvez chamasse de "um fascista consequente", se é que dois adjetivos tão incongruentes podem coexistir em uma única frase sem ulcerar as pupilas de quem lê.
Entre atos: a gramática é amoral.

Meu pacifismo se apazigua ao perceber que Nascimento perdeu a mulher para um defensor dos direitos humanos, que deixa o enteado ver programas anti-Nascimento. Workaholic, este protagonista não tem sequer um cãozinho a esperá-lo em casa. Em seu terno preto e expressão fechada, envelhece em uma ostra; e, mesmo parecendo não se lamentar por isso, dá poucos sinais de alegria ao longo do filme. Parece viver em uma espécie de anestesia administrada pelo cumprimento do dever, trazendo um rosto que oscila entre as paixões tristes e a inexpressividade treinada dos que cumprem ordens sem dar opinião. Ao fim e ao cabo, meio desiludido, desesperançado, mas ainda aferrado à doutrina. Efeitos cumulativos de tanta violência? O Tropa de Elite I é sua jornada em busca de um substituto, mas ele não o consegue, por quê? Não temos explicações.

Para Nascimento, o homicídio é secundário. O centro de sua existência é a obsessão com um ideal, o das qualidades militares. Ele acredita na Corporação (o Bope) como todo fascista acreditava no corpo social da Pátria de Mussolini. Acredita no amigo, o André Matias, como homem obediente, que combina força e decência, espelho das qualidades do seu mestre. O ideal não é criativo, mas funciona: um dia depois do outro, protege milhares de zelosos agentes da lei das dúvidas aflitivas, que prejudicariam seu ganha-pão. Nesse meio social, o excesso de palavrões parece encobrir uma certa escassez de criatividade, de idéias, de entendimento mais complexo do mundo em que vivem. Não sei.

Vai ver que ele só me desperta certa compaixão justamente porque, no fundo, acredita naquilo que é tão difícil de fazer meus alunos desconfiarem, porque tem mil e uma utilidades: o mito da ordem e da disciplina, fundador da República brasileira. Se essa Musa dos incautos tiver despida a túnica desse mito, revela-se tão injusta, cínica, excludente, que muitos de nós talvez se revoltassem ou se deprimissem, ou coisa pior. Mas Nascimento não é bobo. Demora, mas ele percebe que não adianta matar e espancar, porque a natureza humana é anarquista, desdenha do Estado, da ordem, acumula tolos desejos de riqueza e vingança, e ele é impotente para generalizar seu modelo espartano de vida. A milícias do Tropa de Elite formam um pseudo-anarquismo parasitário do Estado, feito por homens acima de suspeita que nos fazem sentir saudades dos traficantes do Tropa I. E Nascimento também se pergunta, ao fim: por que matei tanto? Para dar nisso aí?
A morte do amigo e colega de BOPE é realmente um golpe em seu rígido senso de responsabilidade para com os subordinados, em sua ilusão na capacidade de protegê-los, e outras qualidades necessárias para sobrevivência do ofício. Esse herói deve ter agradado menos a média do público que o do Tropa I; agora ele se tornou mais complexo. No fim do filme, percebemos que o sentido psicológico de sua missão, a convicção de que o BOPE "sanitizará" o Rio com a soda cáustica da ordem e da disciplina, arruína-se por completo. Frente ao teste de realidade, Nascimento alcança uma compreensão mais profunda do funcionamento do "sistema".
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E agora, analiso o filme como tese sociológica. Um pouco de Gandhi, Tolstói, Thoreau e da contracultura já apontaria a inefetividade de se recorrer a meios violentos para criar uma sociedade não-violenta. Não somos computadores com botão de deletar - "aí, cidadãos, esqueçam a maldade do BOPE e tenham uma vida feliz!".
No fundo, não é mesmo o apaziguamento que está em causa. O filme consegue criticar bastante bem a tese simplista de que basta aniquilar os traficantes e a favela será um local bacana - e esse recado fica claro mesmo para os espectadores mais ingênuos. Ora, a violência na favela insere-se em um sistema. E no fim, Padilha volta suas lentes para o lugar onde os piores bandidos se concentram, i.e., Brasília.

Que tal, então, extinguir Brasília, já que é o verdadeiro centro da corrupção e da violência? Talvez pense assim o espectador ingênuo. E o filme anda em círculos, não chega a uma análise mais profunda do Estado, do narcotráfico (dificilmente o faria com a rede de patrocinadores que tem); não analisa o potencial impacto da descriminalização das drogas, não analisa o processo pelo qual um menino se torna traficante (o próprio MV Bill foi muito mais longe nesse ponto), traumatizado, violentado e sem alternativas para ganhar o seu pão. Somente um ingênuo poderia acreditar que o Estado brasileiro, com seu imenso poder econômico, não seria capaz de derrotar bandos de homens com armas do Exército, mas sem treinamento militar e comando central. Sim, parceiros, o BOPE tomou os morros, e daí? O abstrato "sistema" é capitalista, e aí entra outro ponto que me incomodou profundamente - ao se manter a guerra no nível do círculo tráfico-milícia-Estado, a fonte primeira de nossa organização social, o Grande Capital, escapou incólume. E é dele que vêm as armas, os vícios, o darwinismo social a que nos acostumamos quase como segunda pele.

Ora, vamos. Ninguém estranhou o patrocínio do filme pela Claro? Meus parabéns por abrir os olhos dos ingênuos, Padilha, mas sua frágil noção de sistema deixou de lado o elo principal da corrente, esse, que os moradores de tantos cortiços do mundo enfrentam todos os dias, a fonte primária da violência do Estado. O BOPE, mais do que resgatar sua população para direitos historicamente negados, é uma máquina de guerra para o grande capital acessar a favela sem ter de pagar propina para um lado ou outro.

E soltar esse filme meses antes da história da ocupação das favelas e instauração das UPPs?! Pode ser coincidência, mas...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Sonhos padronizados


Descobri o cinema de Darren Aronofsky e não consigo mais parar. Tomemos “Requiem for a dream” ["A vida não é um sonho"] (2000). Sara Goldfarb, mulher solitária, simpática, prendada, imagina-se na TV, vestida com seu vestido favorito - o que usara na formatura do filho, Harry. Em sua fantasia, ela está penteada, maquiada e magra, falando animadamente sobre sua amada família para um alegre apresentador de programa de auditório; nela vemos nossas mães e as mães de toda a gente. Seu sonho, tão popular, é alimentado por uma cartinha da emissora de televisão que a convida a participar do programa. 

Sara captura nossa estima tão rapidamente como a frágil personagem de Mia Farrow em a “Rosa Púrpura do Cairo”. A montagem de Aronofsky é intensa como a de Eisenstein. O resultado induz um pânico difícil de sanar; como diria Vigotski: ao invés do simples contágio, produz uma ferida.
Faz sentido. Harry é usuário de heroína. Em suas enormes pupilas, sonhamos com ele, repetidamente. O que sonha? Sonha caminhar em um lindo píer na direção de sua amada Marion. Marion, seminua, olha-se no espelho, embriagada por alguma sensação de poder sem contradições, uma ilusão que é ela própria, em certa medida. Tyrone, o terceiro amigo, sonha ser importante. E todos ignoram que a Fortuna encaminhava-os muito mal. Marca-se tal sucessão de cenas kafkianas que só fazem nos mergulhar no lado B de um mundo semidesconhecido, cujo muro entre psicotrópicos legais e ilegais é fundamentalmente a hipocrisia.
 
Sara fantasia o sonho americano: casa asseada, com cada coisa em seu lugar. A dona, em seu centro, pode exibir à platéia a sua feliz e comportada família, em que drogas e álcool não têm voz nem vez. Mas, que azar! Pela porta dos fundos entram medicamentos. A fim de
 parecer mais magra na TV, Sara torna-se dependente de anfetaminas. O filme está para nossa cultura medicalizada tal qual os dramas de Ibsen estavam para os tempos revolucionários da burguesia: a verdade sobre uma sociedade em crise, na qual nenhuma ilusão parece se sustentar sem o apelo a poderosos narcóticos ou técnicas médicas, infiltra-se por nossos olhos como as agulhas através do putrefato braço de Harry. Essa verdade genial do filme é a demonstração de que não o desvio, mas sim a forçada normalidade dos personagens - todos, alimentados por este ou aquele sonho americano - é a fonte inexorável de seu horror e destruição, da obsessão sancionada que muitos chamariam de padronização.

Já dizia Espinosa: mais vale multiplicar os desejos para que nosso corpo/mente não se torne refém de uma só paixão. Mais valem os bons encontros que as idéias imaginativas. E um mundo em que as categorias mais desejadas são também as mais vazias de espírito público - dinheiro, riqueza, beleza - essas personagens não podem se gabar de seus bons encontros, nem da atividade de seu corpo, nem de participar da difícil invenção do bem comum, que alguns larápios oportunistas chamaram de política. Os personagens de Aronofsky vagam em um mundo que fabricou a relação entre crime e castigo, a noção de que o vício induz seu próprio fim, e se não induzir, manicômios ou prisões farão o serviço. Penso que essa "higienização" é feita no filme ao alcançar a visibilidade da vida pública, antes de que as velhinhas, amigas de Sara, fiéis companheiras de cadeiras de jardim e torta de maçã, desconfiem do estofo cruel e violento oculto em seus inofensivos programas de auditório - ou, tal como ela, tentem tornar mais real o sonho narcótico que eles veiculam.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Velhinhas e motoristas

Estava metida em minha vida.
Foi quando dei aquela olhadinha nas notícias do Yahoo:


Bem, então: motoristas temem mais as multas do que abalroar as velhinhas. Estas, lentas e trôpegas, já não correm como os jovens de um homicídio aleatório. O resultado é mera poça de sangue, e lava-se; mas não os rombos na carteira.

Os outros 36% arriscam a carteira.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O juiz, o ladrão e o vira-latas

"Lear: Como, estás louco? Mesmo sem olhos um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. Vê  como aquele juiz ofende aquele humilde ladrão. Escuta com o ouvido, troca os dois de lugar, como pedras nas mãos; qual o juiz, qual o ladrão? Já viste um cão da roça ladrar prum miserável?
Gloucester: Já, meu senhor.
Lear: E o pobre-diabo correr do vira-latas? Pois tens aí a imponente imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. Oficial velhaco, suspende tua mão ensangüentada! Por que chicoteias essas prostitutas? Desnuda tuas próprias costas. Pois ardes de desejo de cometer com ela o ato pelo qual a chicoteias. O usurário enforca o devedor. Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem esconder o menor vício; mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo. Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém – digo, ninguém! Eu me responsabilizo. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês."  SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. L&PM Editora. p. 172

Sei que as palavras do Bardo compõem Beleza a partir da Verdade. Conheço poucos juízes, e muitos vira-latas, e a tentação de virar eu própria as latas da vida emerge, neste mundo em que ter um cargo qualquer é confundir-se com possuir a Verdade, essa musa caprichosa que é mais difícil de expor que de  elaborar. Se a temos, sem coragem, corremos o risco de levá-la conosco para o túmulo. Se a calamos, não seremos mais que vira-latas, sofrendo o mal do Juiz - esse simbólico vira-latas travestido de toga como outros travestem-se de beca, graus, títulos e etc. Raras são as ocasiões em que, talvez cansado por submeter-se, talvez revoltado por ter sido sempre fiel guarda-costas de um amo despótico; raras vezes, nesses ciclos kafkianos da vida moderna, a Verdade aparece, mas não para martelar a cabeça do juiz (esta, protegida por sua própria obtusidade, seu caráter vão, seus procedimentos cuidadosamente escolhidos), e sim a do ladrão - o bode expiatório que não é nem juiz, nem vira-latas. E aí, exposta e oculta detrás do manto dos Príncipes, a Verdade já terá sido completamente corroída de seu valor: ela é só opressão e nada mais. 
    O juiz é o burocrata da vida, como o médico é o burocrata da morte, parece ter dito Tolstói em seu magnífico "A morte de Ivan Ilitch". Ambos, administradores de processos incontroláveis de estupidificação dos subordinados. A fala nervosa de Lear é a do rei destronado, sem-teto, que abandonou, por amor e vaidade, suas pilhas de ouro em prol dos falsos afagos das filhas. Estas, abarrotadas de dinheiro e opressão, voltaram-lhe as costas assim como a um vira-latas sem cargo, ou ex-juiz despido de suas fragorosas vestes, nu e pobre sem finos mantos que escondessem sua fragilidade e sua demência. Shakespeare protesta: os homens de togas e mantos de púrpura esquivam-se do julgamento, escondendo tudo, escondendo mesmo sua pena pelo ladrão, sua simpatia pelo vira-latas, esse felizardo que não tem de se importar com as pompas do Juizado e pode correr por aí, ao relento que seja, sem olhar o dia, a hora, ou o ponto a bater. Pena que Lear tenha se dilacerado pela traição de suas filhas! Pena que o remorso por sua própria injustiça com Cordélia impediu-o de usufruir da irresponsabilidade própria da loucura, lançando-o nas garras das estrelas. Essas não tem tempo, demência nem angústia. Dispostas num espaço no qual não há remorso nem culpa, contemplam, com seus complacentes olhos brilhantes, a infinita pequenez humana. Eu ainda me destrono. 

"King Lear and a Fool in the Storm". Artista: Sir John Gilbert



segunda-feira, 30 de maio de 2011

O círculo perfeito

Anos atrás, fui atraída para um comentário de Deleuze, citando fala de Scott Fitzgerald sobre o casamento dele com Zelda: "Eu amei a loucura em seus olhos. Ela amou a bebida em meus lábios".

Essa frase me desorganizou o sistema. O amor não são só as cantigas de ninar das mães, as valsas repletas de pudores angelicais, o eufemismo para as passagens de sedução que tanto amamos em Kundera?

Mas eram assim os votos matrimoniais dos jovens Fitzgerald. Os defeitos-virtudes sociais do escritor e de sua mulher formavam um círculo perfeito; diferente, talvez, do amor convencional que contém certa dose de recolhimento, o deles era um amor público a virtudes, na sua maioria, vazias (inteligência, talento, beleza, impetuosidade). O "justo meio", procuraria Aristóteles! Esse preceito pode ser difícil de atingir onde a vida pública gira em torno de seu próprio eixo, como uma enceradeira rangente e monótona, pronta a ser descartada quando um taco velho começa a se descolar. E descolou.

Scott e Zelda amaram bebida e loucura também quando espelhadas nos olhos dos seus admiradores. Scott, mais autocrítico, sofreu da vergonha de adivinhar a futilidade - mas, incapaz de conter a fúria exibicionista de Zelda, fiel escudeiro dessa poetisa prática, usufruiu de suas virtudes-defeitos como prisões sociais de estadia temporária, estações na direção do esquecimento.

Juntos, transcendiam qualquer espírito pragmático (como quem não precisasse da vida prática, vida comezinha e pobretona à qual Zelda jamais se ajustou), o horror ou a vergonha, a beleza de ambos potencializando os seus atos bizarros, eles vingaram-se do convencionalismo criando excessos impossíveis de superar, mas também, vazios de sentido, de devir ou de beleza própria. E acabaram, bem, como sinônimos de um tempo de vazio e abundância, não sei se devia ser assim.

Zelda queria era superar a própria beleza com um valor novo: ela mesma. Mas ela não duraria, e dessa aposta malograda em sua própria grandeza, vai tentando encontrar novos sentidos para a Vida, até estancar os horrores suicidas com - pasmem! - o mais convencional de todos, a religião. Scott era o humilde tradutor do projeto insano da mulher, de sua aventura impossível. 

Não era um pacto de amor sadomasoquista. Talvez fosse uma simbiose, uma fusão completa, uma paixão absolutamente infantil por poderes mais ou menos inofensivos aos outros, Scott e Zelda,  princesa encerrada na torre da loucura; marido em luta inútil para mantê-la a salvo de si mesma. E Scott lamentou-se por deixá-la seguir em seu curso sem volta, participando dos bizarros happenings de Zelda, mulher-bruxa, força natural em seu paganismo meio cômico e meio trágico.  Junto dela até o fim, Fitzgerald foi, sem dúvida, um romântico. Recebeu de presente sucesso e fracasso com o mesmo olhar de pavor e culpa; no seu rosto meio irlandês, sempre o sorriso angelical e infantil. Hemingway, o"amigo"(mais propenso ao julgamento que à compreensão) que tão pouco o ajudou, viu o mundo de Scott dissolver-se em garrafas de uísque, melancolia e dívidas. Faz-nos pensar se apontar a nudez do rei - hábito de todo psicólogo - de fato ajuda-o a se cobrir, ou a tomar partido dessa nudez sem culpa.

E, diz Jeffrey Meyers (in "Scott Fitzgerald: uma biografia"), a rica jovem só queria ser ela própria. Admirando sua intrigante imagem, entendemos o porquê. Perder esse rosto segundo a segundo é necessariamente trágico, pateticamente banal: desperdício e crueldade do tempo combinados com um progressivo encolhimento do espaço social. Talvez eles coubessem mais como antigos ícones da melancolia contemporânea. Um epitáfio cabe-lhes: they had fun!

 
  

domingo, 15 de maio de 2011

A tevê e o meu coraçãozinho (crônica baurulina)

Em Bauru, acabo assistindo televisão enquanto faço companhia aos meus velhos. Costuma doer, mas, até essa Páscoa,  as pontadas nunca haviam se aproximado tanto daquela famosa dor no braço direito, seguida de um túnel de luz com o vulto da sua avó sorrindo para você.
Era dia de Fantástico. Matéria de abertura: mortes nas rodovias, cuja principal causa (somos informados antes de podermos pensar) é a impunidade. Nada a ver com buracos, congestionamentos e afins.
Cenas de certo caminhão batido numa quilométrica fila de carros. Pessoas sangrando (de verdade! Não era molho de tomate!), enquanto um caminhoneiro fugia das câmeras. Não por muito tempo: sua CNH foi habilmente obtida pela reportagem da Globo (corta para um close frontal na foto desse inimigo público). 
Gigi, olha o túnel! Você já não tem 25 anos. Mudei de canal.
Na Record, um programa sobre cachorros. Promessa de alienação inofensiva! Mas eis que começa narrativa sobre a relação entre um homem sem-teto, que há 20 anos teve a mão decepada num acidente de trabalho, e seu fiel cãozinho, juntos durante a coleta de recicláveis. Imaginei a vida desses dois e umas pontadas (imaginárias) voltaram ao meu peito. Voltei para o Fantástico, na esperança de que a reportagem sobre os acidentes tivesse acabado.
E acabara. Exibiam-se cenas de uma câmera de segurança: um bebê recém-nascido era posto numa caçamba de entulho. Em seguida, aparecia um catador de latinhas que, ao se deparar com a criança enjeitada, quase morreu de susto (parecia-se comigo, assistindo à reportagem dos acidentes).
Corta: entrevistas protocolares com o professor e o policial coadjuvantes. Foto da fachada do hospital católico (e chique) no qual a criança se recuperava bem. O policial é a voz da razão: "foi deus!", pois o médico bem-apessoado garantiu que mais uns minutinhos seriam fatais para a menina, já apelidada de "Vitória". 
Se deus apresentou-se, o diabo não fez por menos. A mãe foi devidamente aferrolhada e exibida para as câmeras, com um corpo surpreendentemente magro para o puerpério (Adriane Galisteu e outras ex-grávidas morreriam de inveja). Trazia na cara uma expressão da mais total frieza. Sua desculpa?! Já tinha 6 filhos e trabalhava como cozinheira! Agora, imagino, já não tem filhos, liberdade ou emprego. Após uns 10 anos de cana, poderá rivalizar com o pobre senhor da mão decepada no processo de catação de latinhas, pois o salvador do bebê  está nas graças da opinião pública. Talvez ele vá obter trabalho, mas como a memória televisiva é curta - além do que há alta concorrência de bebês enjeitados em locais pitorescos - também pode ser que continue procurando latinhas e encontrando latinhas.
Perdoem-me a cáustica amargura, mas me surpreende perceber como histórias assim deixem entrever tragédias tão claras, repletas de desigualdade social, omissão do poder público, má fé da imprensa, e o telespectador talvez nada observe. O sentimentalismo é complemento necessário da inanição intelectual. Vilão, mocinho, mocinho mais mocinho, mocinho menos bandido, e acreditamos que o Bolsa Família realmente tornou o Brasil um país justo. Vivemos é numa nação cruel com os pobres, estupidificada e kitsch. E ainda dizem que nossos afetos são naturalmente bons! Que erro! Eles podem ser é cúmplices da nossa subserviência compassiva e virtuosa.
Ainda bem que só volto a assistir televisão em julho. Nesse ritmo, meu coraçãozinho não aguentaria.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Inscrição para uma lareira

A vida é um incêndio: nela 
dançamos, salamandras mágicas 
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida…


Mário Quintana


      Ainda fascinada pelo "The U.S. against John Lennon". Recomendo. E, como toda imaginação (escravizada pelos afetos), associo o poeminha do Quintana à vida intensa do ex-Beatle - que eu sempre creditei como ex-Beatle, e não como um ser singular, dotado de idéias e vontade que pudessem subsistir à sua (meramente relativa) decadência musical. Confesso também que sempre fui adepta do ódio cego a Yoko Ono, a pistoleira, a sem-vergonha-sem-talento-e-caça-níqueis que causou o fim da maior banda de todos os tempos. 
    Mas sou velha o suficiente para reconhecer (alguns de) meus erros. O filme - cuja perspectiva é a da Yoko - e o EduKótchki - meu músico favorito - acabaram me convencendo de que John já estava noutras quando a garota e suas performances malucas (algumas interessantes, outras de gosto duvidoso, mas, enfim, nem toda experimentação dá certo, dá?) conquistaram-lhe o coraçãozinho. 
     John após Beatles cresceu politicamente: uma inspiração para nossos jovens, que jamais viram um  artista pop corajoso o suficiente para abraçar um pacifismo radical. O máximo que vêem é o Bono Vox pagando de filantropo, bem fiel à ordem estabelecida, narcisista a ponto de te dar vontade de cutucar os próprios dentes com uma faca, contar pontos em provas de títulos, ou pior, ler Kant sem anestesia. John não foi um militante de cartilhas: aí é que está a graça. Converteu seu triste destino de menino abandonado pelos pais numa permanente reinvenção de si mesmo, mostrando uma coerência e uma coragem admiráveis (além de usar mui sabiamente os montões de dinheiro que ganhou). Abdicou dessas bobagens fatalistas que há tantos anos oprimem as alternativas da esquerda política, abdicou das mulheres com pinta-de-estrela-de-cinema, abdicou da maior banda do mundo (ou antes, reconheceu seu fim) e, por fim, abdicou de recuar quando perseguido por Nixon e a CIA, e outros caras menos poderosos, mas igualmente infelizes nos seus destinos carimbados e sombrios de promoções e carreiras escusas. 
     Sua chama foi bela e alta, como diria Quintana, também por ter conhecido a alegria e o amor (sem ser brega ou tolo), elevando sua chama johnisíaca até uma gloriosa extinção: 

And in the end
The love you take
Is equal to the love you make (Paul MacCartney, "Abbey Road". The Beatles)



segunda-feira, 25 de abril de 2011

O conselho de Joyce

"A compreensão crítica que expresso em relação a algumas das correntes fundamentais das correntes teóricas pós-modernistas se dá, por um lado, a partir da leitura de várias obras de autores referenciais como: Jean François Lyotard (1924-1998), na sua "A condição pósmoderna" (LYOTARD, 2000); BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, em "Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade." (SANTOS, 1999); Jacques Derrida (1930-2004), Pensar a desconstrução (DERRIDA, 2005); Gilles Deleuze (1925-1995) e Felix Guattari em Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. (DELEUZE; GUATTARI, 2007). Por outro lado, a compreensão acima expressa acerca das principais vertentes do pensamento pósmodernista também se construiu, por exemplo, a partir da leitura e reflexão das obras de: (DOSSE, 1993), (WOOD;FOSTER, ORGS. 1999); HARVEY (2004); (EAGLETON ,2005), (SOKAL; BRICMONT, 2006). Aliás, estes últimos mostraram, de maneira insofismável no livro em questão, mais uma característica marcante de vários teóricos matriciais do pensamento pós-modernista: o charlatanismo intelectual empolado com falso conhecimento sobre questões científicas a respeito das quais não tinham o menor domínio. Sokal e Bricmont apresentaram de maneira cristalina os termos absurdos e, por vezes, bizarros que esses autores se apropriam e “abusaram repetidamente da terminologia e de conceitos científicos: tanto utilizando-se de idéias científicas totalmente fora de contexto, sem dar a menor justificativa [...] quanto atirando jargões científicos na cara de seus leitores não-cientistas, sem nenhum respeito pela sua relevância ou mesmo pelo seu sentido.” (2006, p. 10). Essas “imposturas intelectuais”, afirmam Sokal e Bricmont, estão no âmago da compreensão teórica que esses autores entendem por ciência. Segundo seus termos precisos: “vastos setores das ciências sociais e das humanidades parecem ter adotado uma filosofia que chamaremos, à falta de melhor termo, de ‘pós-modernismo’: uma corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista do Iluminismo, por discursos teóricos desconectados de qualquer teste empírico, e por um relativismo cognitivo e cultural que encara a ciência como nada mais que uma ‘narração’, um ‘mito’ ou uma construção social entre outras”. (ibid, p. 15, grifos meus). Em oposição frontal às imposturas que trazem à tona, os autores querem fundamentalmente mostrar que: “Nossa meta é precisamente dizer que o rei está nu (e a rainha também). Porém queremos deixar claro: não investimos contra a filosofia, as humanidades ou as ciências sociais em geral; pelo contrário, consideramos que estes campos do conhecimento são da máxima importância e queremos prevenir aqueles que trabalham nessas áreas (especialmente estudantes) contra alguns casos manifestos de charlatanismo. Em especial queremos ‘desconstruir’ a reputação que certos textos têm de ser difíceis em virtude de as idéias ali contidas serem muito profundas. Iremos demonstrar, em muitos casos, que, se os textos parecem incompreensíveis, isso se deve à excelente razão que não querem dizer absolutamente nada.” (ibid, p. 19, itálicos do autor e grifos meus). Os teóricos analisados pormenorizadamente por Sokal e Jean Bricmont foram: o médico, psicanalista e filósofo francês, Jacques Lacan (1901-1981), a filósofa búlgara Julia Kristeva (1941-), a filósofa e feminista belga Luce Irigaray (1932-), o filósofo e professor francês da Universidade da Escola Superior de Paris Bruno Latour (1947-), o sociólogo francês Jean Baudrillard (1929-2007), o filósofo e historiador de filosofia Gilles Deleuze, Félix Guattari e o filósofo e urbanista francês Paul Virilio (1932-)."LAZARINI, A.Q. A RELAÇÃO ENTRE CAPITAL E EDUCAÇÃO ESCOLAR NA OBRA DE DERMEVAL SAVIANI: Apontamentos Críticos. Tese de doutorado, 2010, UFSC. 
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Não sei se concordo com tudo, pois não tenho leituras mais profundas desses autores, mas não deixo de sentir cheiro de enxofre diante de outros... Já leram "O homem de areia", de Hoffmann? Tal como nesse bárbaro conto, parece haver alguns alquimistas por aí, misturando seus compostos com a eficiente cola proporcionada pela imaginação dos jovens, dos esnobes e dos incautos em geral. Mais ou menos como disse o Zé Paulo Netto: se um matemático diz que 2 + 2 = 5, ele é sumariamente rechaçado. Se um cientista social diz que as classes sociais vivem em harmonia, ganha alguma medalha. 
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Já disse James Joyce: "manter os doutores ocupados é o único modo de alcançar a imortalidade". Mas ele, ao contrário de alguns desses teóricos aí em cima, nunca pretendeu nada além da ficção. 
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Quando um cidadão erudito do século XVII começava a transitar entre três ou quatro campos de conhecimento, chamava-se sábio. Hoje, chamamo-lo charlatão. Quem aguenta até com o seu próprio campo? Mas, assim, as coisas são bem menos divertidas.

Joyce (aqui fotografado num momento dândi) zoou gerações de acadêmicos e seus óculos menos míopes, obrigando-os não a criticá-lo, mas sim a se fustigarem mutuamente com suas varas de marmelo. O troféu: quem parece menos burro ao ler Finnegan´s Wake? Enquanto isso, o povo morre de fome, ali mesmo no vão da porta (ah, mas por que eu disse isso, se eu também fico em casa lendo textos?). Close na Chapeuzinho caindo na conversa do Lobo Mau, meio toscamente desenhado.

domingo, 17 de abril de 2011

Examined Life (2008)

Este documentário contém uma série de entrevistas com figuras cabulosas do pensamento contemporâneo, como Slavo Zizek, Judith Butler, Peter Singer, entre outros. 
Você encontrará o material em torrent - infelizmente, sem legendas - aqui. Vale a pena conferir - particularmente, o inglês macarrônico de Zizek, que concedeu sua entrevista sobre ecologia em meio a um (presumivelmente, fedorento) lixão.




domingo, 10 de abril de 2011

Sobre educar

Expor idéias é uma tarefa inglória: mesmo quando se domina o assunto, e não passamos pelo vexame de interromper nossos passos para vasculhar alguma noção perdida nas confusão do cotidiano - gaguejando, esquecendo - precisamos pensar nos interlocutores. Onde estará aquela citação preciosa? Entre a pasta de dentes que preciso comprar e a multa a ser paga? Heller e sua leitura simples da vida cotidiana sempre me orientaram com uma saída nessa temática, na qual quem lê demais parece saber muito menos, justamente, por se confundir com aquilo que lê.

Um bom orador deve, além de domínio do assunto, conhecer os interlocutores e adaptar, na velocidade de uma sinapse, as idéias mais complexas num horizonte que eles possam vislumbrar, dominando as fontes de sua inquietação - sobretudo, as suas dúvidas sobre a verdade de seu discurso: em alguns momentos, é necessário ocupar o lugar de um mero expositor - até que seus interlocutores dêem um passo na direção daquela verdade não tão certa. Mas, então, sua incerteza não tem mais necessidade de adormecer numa máscara de sabedoria pronta a arruinar-se: pode aparecer como a insuspeita Razão que, sem desdenhar dos afetos, sem diminuir a frágil capacidade humana de compreender seu Universo, descobre apenas sua morada na transitoriedade de cada autor que já se empenhou em tentar aproximar-se dessa deusa caprichosa - a Razão - cujo assento numa ínfima parte de nosso corpo não bastou, ao longo dos séculos, para que as demais buscassem sua loucura, sua perdição, seu viver alegre e despreocupado de que a verdade exista ou não exista. Razão não é, afinal, certeza, mas sim uma espécie de inquieto amor pela verdade instrumentalizado pela arma da lógica, cujos produtos são para nós e estão tão destinados a perecer quanto nós próprios. Deve ser por isso que Goya compôs essa gravura aí:




segunda-feira, 28 de março de 2011

Homo sentimentalis

Observação: o Sr. Marcos Machado (se é este mesmo o seu nome) avisou-me cordialmente que o termo seria "Homo sentimentalis", e não "Homus", e que este termo se aplicaria melhor à pasta de berinjela que degusteio todas as quintas-feiras. 
Obs para constar: odeio eruditos, eles curtem com a impotência alheia.


“É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta sentimentos (porque todos somos capazes de experimentá-los), mas como uma pessoa que os valorizou. Desde que o sentimento seja considerado como um valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho de nosso valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos.
            Essa transformação do sentimento em valor produziu-se na Europa em torno do século XII: quando cantavam sua imensa paixão por uma nobre dama, por uma bem-amada inacessível, os trovadores pareciam tão admiráveis e tão belos que todos, a exemplo deles queriam se vangloriar de ser a presa de algum indomável movimento.
Ninguém penetrou o homo sentimentalis com mais perspicácia do que Cervantes. Dom Quixote decide amar uma certa dama, Dulcinéia, apesar de mal conhecê-la (não existe aí nada que possa nos surpreender: quando se trata do wahre Liebe, do verdadeiro amor, já sabemos que pouco importa a amada). No capítulo vinte e cinco da primeira parte, ele retira-se para as montanhas desertas em companhia de Sancho, lá onde quer mostrar-lhe a grandeza de sua paixão. Mas como provar que em sua alma arde uma chama? [...] Então, no caminho íngreme, Dom Quixote se despe, fica apenas de camisa, e para mostrar a seu escudeiro a extensão de seu sentimento, começa a dar saltos e cambalhotas em frente dele. Cada vez que fica de cabeça para baixo, a camisa escorrega de seus ombros e Sancho enxerga seu sexo que balança. O casto e pequeno membro do cavaleiro oferece um espetáculo tão risivelmente triste, tão pungente, que até Sancho, com sua alma rústica, não agüenta, monta em Rocinante e vai embora em disparada.” (Milan Kundera, "A imortalidade", RJ: Nova Fronteira, 1990, p.191).
Do site: 



sábado, 19 de março de 2011

domingo, 13 de março de 2011

Até que o tempo estie

Tenho que fazer algo da minha vida, e precisa ser agora, AGORA, antes que a chuva caia. Ou que o tempo esquente. Vejam, meus senhores, o que importa é me dar um prazo preciso, curto, tão curto quanto alguns minutos ou poucas horas, pois desperdiçar a vida é mais meritório que andar num compasso tímido. A desgraça é saber o que vou fazer para aproveitá-la devidamente. Preciso abortar os argumentos perdidos, chutar as mágoas para trás, inocular a verdade na justiça, ou em qualquer lugar; expulsar essas frases inúteis de criatura versada nos volteios das palavras... que frases? Essas que estou dizendo agora, ou as que disse quando pensava dizer alguma coisa? Mas, o que importa, isso é tão rude! Tão, tão mesquinho e humano! Exigir do tempo uma ação, quando já não existam mãos que nos cheguem, e nem todos os nossos pensamentos sejam honestos, são todas, todas, iniciativas de uma séria presunção. E a minha vontade vira a carpideira de um túmulo que jamais existiu, o túmulo da MINHA VERDADEIRA VIDA. É a vontade mais preguiçosa e sacana que jamais existiu.
É certo que posso ficar aqui, deitado, simplesmente, sem fazer nada até a chuva cair, só para provar que a vida passa e eu não faço nada. Mas disso, disso, percebam meus senhores, eu JÁ SEI. E TODA A GENTE O SABE, PORQUE TODA A GENTE, COM A PERNICIOSA EXCEÇÃO DE UM GALILEU OU OUTRO, NÃO FAZ MAIS. O pior é que resta a esperança de o tempo passar de modo diferente, e difícil não é provar que existe a inércia - até o Ptolomeu já devia saber disso: a inércia é o prato cheio dos poderosos; é a força que mantém a humanidade estúpida, imaginando que o Sol gira em torno da Terra, uma vez que a Terra, essa lesada majestade, está sempre parada - seria muito mais difícil convencê-la do contrário. Mesmo hoje, os homens vêem o Sol em movimento, e acham esse tal de Galileu um energúmeno. Eu o acharia um energúmeno, se não soubesse dessa coisa da inércia e do movimento por tanto ficar aqui, sentado nesse sofá comendo amendoim, enquanto tenho manias de grandeza. Bah, o negócio talvez seja ir dormir e não ver se a chuva caiu ou não, enquanto eu fico aqui, pensando no que faço até que o tempo esquente pro meu lado e venha a chance de uma estiagem com piscina, para eu desperdiçar minha vida como se deve.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dossiê Vigotski na "Psicologia USP"

Saiu, finalmente, o Dossiê Vigotski que venho organizando há dois anos:
Nele, apresenta-se a primeira tradução direta ao português da conferência Probliema sriedi v pedologuii ou "A questão do meio na pedologia", proferida por Lev Semionovich Vigotski entre 1933-1934 (mais provavelmente 1933). Trata-se da única conferência dos "Fundamentos de pedologia" que veio à luz no Ocidente.
Apenas uma retificação: como o Dossiê Vigotski demorou muito tramitando na Psicologia USP, gostaria de ressaltar que há uma informação desatualizada em minha apresentação: a última publicação de Vigotski no Brasil não foi "A construção do pensamento e da linguagem" (2001), mas sim uma tradução de Zoia Prestes da "Imaginação e criação na infância" (2009).
A tradução, que foi financiada pelo Instituto de Psicologia da USP, é acompanhada de 4 textos de comentário. Confira no link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-656420100004&lng=pt&nrm=iso

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Caso Rosângela Justino

Acompanhe o resumo do caso Rosângela Justino, punida com censura pública pelo CFP, no verbete do Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Rozangela_Justino.
Matéria da Folha traz detalhes do "tratamento" proporcionado por Rozangela:  http://www.agenciaaids.com.br/noticias-resultado.asp?Codigo=12606
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Notem o discurso paranóide e a completa carência de fundamentação científica do discurso da psicóloga na matéria da Folha.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

De como não tivemos origem monogâmica...

"The theory of a natural development of society from the family was first elaborated by Aristotle, but it goes back in its fundamental idea to legend and myth. Peoples frequently trace their origin to an original pair of ancestors. From a single marriage union is derived the single tribe, and then, through a further extension of this idea, the whole of mankind. The legend of an original ancestral pair, however, is not to be found beyond the limits of the monogamous family. Thus, it is apparently a projection of monogamous marriage into the past, into the beginnings of a race, a tribe, or of a mankind. Wherever, therefore, monogamous marriage is not firmly established, legend accounts for the origin of men and peoples in various other ways. It thinks of them as coming forth from stones, from the earth, or from caverns; it regards animals as their ancestors, etc. Even the Greek legend of Deukalion and Pyrrha contains a survival of such an earlier view, combined with the legend of an original ancestral pair. Deukalion and Pyrrha throw stones behind them, from which there springs a new race of men.
            The thought of an original family, thus, represents simply a projection of the present-day family into an inaccessible past. Clearly, therefore, it is to be regarded as only an hypothesis or, rather, a fiction. Without the support which it received from the Biblical legend, it could scarcely have maintained itself almost down to the present". (Wundt, Wilhelm. Elements of folk psychology. London; New York; George Allen & Unwin; The Macmillan Company. 1915. p.12)

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