segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Proibido vadiar no metrô

ENTÃO, eu sempre sinto esse desamparo frente aos homeless guys. Artistas ou cientistas; brancos ou pretos; brasileiros ou estrangeiros; amigáveis ou detestáveis; jovens ou velhos, são categorias que, em seus pares contrastivos, são infinitamente mais estranhas pra mim do que a dos sem-tetoEsses sim são meus chaps, já que, por motivos biográficos bastante sem-graça, eu tenho uma média de quatro pesadelos semanais com o mesmo tema: de repente, não tenho mais onde morar.
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Num sábado, andávamos na Yonge Street e os sem-teto distribuiam-se regularmente, um a cada esquina, com seus bonés, chapéus ou outro objeto estendido sobre a calçada almejando os trocados de quem passasse. Penso que eles dormem no albergue Yonge Street Mission, na rua homônima - a concentração da rapaziada ali é acima da média de Toronto. Quase todos esses sem-teto eram homens, com idade variável, todos com mais de 30 anos - não se vê crianças mendigando ou fazendo bicos no semáforo; as instituições dão mais proteção a elas que no Brasil. Mas eu não sei o que sinto sobre isso - penso que esperava não encontrar gente em situação de rua por aqui. Como diz o Kótchki: são muitos os apelos para redução das taxes (impostos): o neoliberalismo está chegando; lenta, pervasiva e viciosamente, como no Brasil.

Meus chaps traziam pequenas placas pedindo esmolas. Garoava, e nenhum tinha guarda-chuva. A maioria deles mostrava pele branca e olhos azuis, em um contraste racial tão forte com a minha memória dos sem-teto no Brasil que só posso admitir o fato de que venho, sim, de um país racista (o Canadá sem dúvida vive algo mais próximo de uma democracia racial). Por sorte, aqui há mais abrigos e imagino que eles só fiquem a descoberto durante o dia - o outro lado da moeda é terem de enfrentar pelo menos umas 12 horas de frio pesado, sem marquises ou bancos (aqui também a municipalidade tem feito um ótimo trabalho com os assentos curvos em que é impossível se deitar decentemente; a neve cobre os que existem, completando a sua parte nessa tragédia mais social que física). Só as imaginações perversas da Inquisição devem ter conseguido superar, em violência, esse sofrimento de se ver a si mesmo em um dia inteiro de frio, trocados, sujeira, fome; e o pior, falta de perspectiva de sair disso tudo.

Há tantos pontos de doação de agasalhos na cidade, como é possível que se trema de frio e se viva na rua? Os torontonitas são malvados? Evidente que não; são gente amigável e pacífica nos contatos cotidianos, confirmando que a política é o embate de forças no seio do capitalismo e não do caráter dos políticos ou de seus 'representados'. Eu não queria vê-los, mas lá estavam eles, impondo-se ao meu wishful thinking de senso comum como um tapa quente numa cara gelada. Uma cara com expressão de privilegiada que não compreende porque o mundo não foi feito à semelhança de sua mediana imaginação. É ela mesma quem compra imagens da existência de um paraíso em algum lugar distante; geralmente, mais pro Norte.

Quem imagina não fica desamparado, afinal de contas. Consideremos a vantagem significativa de que o Papai Noel mora a um paralelo de Toronto. Na noite de Natal, atolou o saco de presentes com logo do Wal Mart na chaminé da vizinha, e os simpáticos bombeiros torontonitas vieram dar uma força, antes de cantar "It´s raining men" no gay club do Saigong Bankok, bem ali na esquina. É sério, tem mesmo um Saigon Bankon na St. Clair West, depois eu posto uma foto com o Kótchki dando tchauzinho.
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Pela loirice, eles me lembraram o Kurt Cobain antes do Nirvana, nos seus tempos de tramp (vadio, andarilho). Ou os fantasmas-vivos saídos da Cidade de Vidro, o primeiro conto da Trilogia de Nova Iorque, de Paul Auster. Seriam drogadictos, alcoólatras? Por qual história filha-da-puta abandonaram suas cidades pra jazer ali? Senti quase hostilidade por estarem na rua quando eu, sim, vadiava a gosto; e logo atingi certo estado indefinido de angústia aniquiladora de qualquer reflexão, pela pura e simples inutilidade do processo reflexivo. Para lembrar o fatalismo latino-americano, vem a dar na mesma: angustiada ou não, eu compro o meu tablet; o rapaz da Yonge Street treme de frio.

Mas nesta noite, eu não terei pesadelos, pois não hei de dormir.
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Um deles, o mais parecido com o Kurt, tremia convulsivamente, como certo senhor que eu vira no parque semanas atrás. Caro leitor, peço-lhe que imagine a chuva molhando seu corpo (se cai chuva e não neve, é porque a temperatura tá positiva, obviamente), e depois, com a queda de temperatura no início a noite (às 5 da tarde), imagine a água congelando sobre o seu corpo.

Passou pela minha cabeça perguntar-lhe porque ele não saía dali, embora me desse conta da idiotice embutida na coisa. Não há saída de um céu tão opaco, sob o qual eles precisam ficar da manhã à noite, como o Orwell do "Down and out in Paris and London", esse grande clássico da trampagem, que te coloca junto com o autor-sem-teto em um tempo vazio, cheio de dores intensas o suficiente para aniquilar sua vontade, seu amor-próprio, seu sentido de futuro e sua serena avaliação do passado. E uma pessoa sem vontade, amor-próprio, futuro ou passado já está deixando de ser uma pessoa para se tornar um cadáver.

Lembrei-me do Orwell também por causa dos avisos nos metrôs daqui: algo como "loitering is forbidden" ("proibido vadiagem"). O bonequinho que representa a ação tem os braços cruzados sobre o peito enquanto olha para mim - mas, inocente, ainda não sei quanto tempo de braços cruzados no metrô conta como crime de vadiagem. Por via das dúvidas, ninguém vadia no metrô; você só pode fazê-lo na rua, provavelmente porque o frio já é castigo suficiente - logo, a força policial não se faz necessária. Eu não sei se o flâneur Baudelaire vadiava no inverno, mas acho que em Paris era possível vadiar em qualquer lugar, pois o Orwell sentiu falta de lá quando caiu na severidade do anti-loitering londrino. Ele nunca podia dormir duas noites seguidas no mesmo abrigo - ou seja, não podia parar (como o bonequinho do loitering); tinha que rodar (tramp) na direção do próximo ponto.
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O jovem da Yonge tem a angústia estampada no rosto. Dentro das livrarias, centenas de consumidores circulam; gente entrando, saindo, passando, e ele treme enquanto escrevo todos esses verbos. Vejo também outro homem, mais velho e pobremente vestido, lendo revistas sentado no chão da livraria Indigo. Para quem gosta de Pollyana e quer fazer o jogo do contente, dois pontos: 1) ele sabia ler; 2) ninguém o mandou sair da loja. Mas acho que não há livrarias suficientes em Toronto - mesmo as 50 bibliotecas públicas não vão dar pra receber todos eles. Por sorte, todas as casas têm chaminé, e aí o Papai Noel pode continuar atolando-se à vontade.

Essa sou eu, dando tchauzinho dentro do meu abrigo (imaginário?)


sábado, 30 de novembro de 2013

Costurinhas do Canadá

AGORA parece mais fácil entender a inércia agradável em que alguns - digo 'alguns' porque nunca cheguei a esse 'paraíso' do auto-esquecimento - vivem sua vida cotidiana, e o que significa mudá-la quando se tem uma vida já estruturada. Essa é a terceira vez que (como diria a mãe do Zé, ex-namorado da minha irmã) faço as galinhas juntarem as pernas (ou seja, me mudo) e penso que o nomadismo acabou se instilando no meu modo de ser, como algo natural. Mas, lá no fundo, não gosto de mudar. Vai entender.

Talvez seja um resíduo da época em que meus bisavós chegaram ao Brasil, com uma mão na frente e outra atrás. Talvez, nas minhas entranhas resida o gosto do novo - o desejo de deslocar-me; fazer outra vida por meio de uma nova forma de reconhecimento, negando o desejo parental de, simplesmente, postar-me quieta, comungando das mesmas ideias com as mesmas pessoas. Talvez, a percepção de que, ao ter sido forçada a deixar minha terra natal, é inviável supor que qualquer terra será, de fato, minha. E como poderia, sendo tão óbvio que - para repetir Chris McCandless - as coisas que vc possui acabam te possuindo?

É claro que outros tempos virão - em que eu não tenha que procurar moradia ou roupas - nos quais terei mais do que contatos comerciais e busca de preços para fazer. Mas, no todo, a principal impressão dessa semana é de que o modo-de-vida torontonita é como o brasileiro (se posso colocar nessa conta Bauru/Goiânia/São Paulo): centrado no carro (a extensão territorial da GTA, Zona Metropolitana de Toronto, é imensa, e as linhas de metrô são restritas), na família e nas compras - particularmente, nos eletrônicos. É claro que vemos, nos metrôs e ônibus, pessoas humildes com suas cargas (sempre tive conexão com elas: os pobres e suas sacolinhas misteriosas, já dizia à Eiko anos atrás!), roupas descombinadas, a aparência cansada. Ainda não conhecemos quais são as dores predominantes na cidade, mas as diferenças de origem dos transeuntes são - junto do frio, é claro - o principal contraste para com as demais cidades em que morei. 50% da população residente em Toronto não nasceu aqui - disse-me  um canadense que Toronto é tão similar a New York que muitos filmes ambientados em Manhattan, são, de fato, filmados aqui. Um globo terrestre em miniatura.

Suponho que seja essa a realidade das regiões metropolitanas de todos os países ricos - e é fácil de entender: não parece difícil encontrar um emprego qualquer, mesmo se você não fala inglês. Exceto pelo sujeito da agência de empregos (certamente, descendente de imigrantes que não vieram há muito tempo) que foi xenófobo com o Edu, e de uns 3 anúncios malandros no site de aluguéis, o clima geral é de receptividade, honestidade, cordialidade, e até solidariedade (tanto quanto parece ser possível em um país capitalista e bastante caro). Há também muitos negros na cidade, embora, até onde eu saiba, não tenha havido escravidão no Canadá. Subsumidas ao capital, as culturas parecem conviver sem maiores atritos, pelo menos, à primeira vista.

Meu happening de hoje é o da senhora vietnamita, emigrada há 33 anos, vendedora em um outlet no qual comprei algumas coisas. Ela viu que meu casaco estava com a manga descosturada e me disse que já tinha trabalhado numa fábrica no Canadá (saiu porque pagavam muito pouco: depois, foi também camareira), então, me ensinaria a dar uns pontos na manga. A loja estava quase vazia.

O processo era meio complexo. Então, eu disse: "Vc costuraria para mim?". Ela e a gerente deram uma risadinha e foram procurar uma linha da mesma cor (não tinha, foi com preto mesmo). Eu disse que lhe daria uma gorjeta, mas ela pareceu ofendida e logo percebi o furo. Comecei a perguntar sobre a vida dela (ela não sabia dizer quanta gente morreu na Guerra do Vietnã, e, sim, ela gostaria de deixar Toronto no inverno, mas afirmou que a vida lá no Vietnã continua braba; ela já conseguiu comprou uma fazenda por lá e volta de vez em quando; e não, as pessoas lá não mais trabalham na fazendas, e sim em fábricas). Agradeci e deixei meu cartão com a gerentes, pois minha nova amiga vietnamita, em passo ligeiro, já tinha ido atender a outra pessoa. Cuidar das roupas de frio é algo que te toma um extra em tempo e atenção - vc tem de vestir e tirar roupas o tempo todo, para não congelar na rua e não fritar dentro dos ambientes, que são todos aquecidos. Bem, "Dressing and undressing is kind of distressing", refrão da nossa recém-batizada 'dança do esquimó'.

Também o frio é uma experiência nova e meio-que subjetiva - impossível, car@s amig@s, descrever o que é sentir algo como -11  graus e um bocado de vento. O Edu sempre se queixa de frio nas orelhas, e eu, nas mãos - se fico sem luvas, parece que meus dedos vão cair. Como cheguei com luvas de verão, tive que sair correndo pra comprar umas novas, super grossas, e mesmo assim sinto frio. Fiquei com uma zona arroxeada no dedo indicador que se parece com uma pequena queimadura. No dia em que chegamos, meus dedos assumiram uma cor púrpura meio cadavérica, me assustei um pouco, mas agora estão ok.

Destaque para os passes do TTC (o transporte público de Toronto), diabolicamente pequenos. Perdemos um punhado nos bolsos até eu me resolver a comprar o Daily Pass (um cartão-passe diário). Começamos a tentar imaginar um sistema alternativo em que um Tolstói valeria por uns 100 Tolk[i]ens, e 50 Rushdies. Quem sabe, em futuro efetivamente multicultural?



sábado, 14 de setembro de 2013

Muleta [amargura]

Cárdia acima, alcança a língua:
qual tênia imaginária
Suspende-se no esôfago
desnudando-se em meio-gorfo,
De resultado quase amorfo.

À mente, acode-me:
O nome "Re-ssentimento".
E pronto, descarto:
Demasiado delicado!
Só atinge ao estômago
Ulcerando uns pontos.

Emoção perdida
Como poltrona puída
É raiva repetida -
cultivada, abstraída
Vibrato maldito
de tenor fodido
Decana parasita
Que vai da boca à tripa.
Qual restos de comida
Jamais digerida.

Bile amarela e preta
Das horas de dor, gameta
Esboçando uma careta
Ao arquitetar vendeta

Sombria ilusão!
Caminhada de perneta!
Dos dias, solidão
Das noites, enxaqueca
Que tipo de reação
Que a amargura derreta
Levará meu coração
A dispensar essa muleta?

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Obs: está bem.... nessa trovinha, usei um dicionário de rimas.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013


“Prezado Theo,
Tirei algumas radiografias de clientes esta semana – em minha opinião, excelentes. Mostrei-as a Degas, que não gostou. Disse que a composição estava péssima, e que todas as cáries estavam amontoadas no canto inferior esquerdo. Expliquei-lhe que a boca da Sra. Slotkin era assim mesmo, mas não quis nem saber. Criticou também a moldura, muito pesada para aquele estilo. Quando ele saiu, rasguei as radiografias em pedacinhos! Como se não bastasse, tentei trabalhar no canal da Sra. Wilma Zardis, mas, a meio caminho desinteressei-me. Descobri que o tratamento de canal não é o que eu quero fazer. Aquilo me deixou afogueado e zonzo. Saí correndo do consultório para tomar um pouco de ar, mas devo ter desmaiado porque acordei na praia vários dias depois. Quando voltei ao consultório, a Sra. Zardis ainda estava na cadeira, de boca aberta. Completei o tratamento a contragosto, mas não tive vontade de assiná-lo” (Se  os impressionistas tivessem sido dentistas, p.246)
ALLEN, W. Sem plumas. Porto Alegre: L&PM, 1980.


domingo, 25 de agosto de 2013

Desejar Tudo

Talvez não se aplique o querer coisas.
Elas nunca podem ser nossas
(sobretudo, quando pessoas).
Talvez importem formas
Um estilo
Uma cor.
Ou um som.
Ver rosas
Desejar Tudo?
Ou alguém por inteiro?
Não, isso é de crianças
Que temem o incompreendido...

Deixe-me aqui um instante
agora que descobri o erro fundamental...
O erro de esperar o Absoluto.
E o oposto:
o de prometer suportar
erros alheios.
Quando Eles são Fossa das Filipinas
Em versão animal.
Sugando-nos com sua bocarra assassina.

Ser heróico! Ser romântico!
Ou ser melhor ou bom.
Quando a irritação é mero efeito
da exposição excessiva...
Mesmo aos que se ama.

Podemos nos irritar e ter alergias
Mesmo das coisas mais deliciosas
E elas podem nos entediar.
E não digo só por dizer...
Já tive coisas deliciosas, e as olho
Às vezes.
E elas me tocam
E sou apenas mais uma
E me convenço que a tristeza é posicional
E a novidade é nula.
E uma tristeza solitária é simplesmente honesta
No seu ser triste.

Tanto mais quando voluntária
Quando ao invés de olhar
Estilos, cores e sons
Olha para o mesmo
E entende que também ele
Merece uma lágrima
E um cumprimento.
E um desejo
de olhar mais.

Mas não sei se compreendo a noite
Ela é velha
E cai sem lhe pedirmos.
E parte sem mais explicações
Apenas para cumprimentarmo-nos
Enquanto adormecemos insatisfeitos
Esperando que a luz do dia liberte
Da competição consigo
De obter mais do que ontem
Do desejo de ser alguém.

Não morrerá a língua dos nossos versos?
e o planeta no qual foram escritos?
Até os dele, o sublime Campos da Tabacaria!
Queria a salvação da noite
Mas ela chega e vai
E aqui fico, silente.
Desejando Tudo.

(Publicado em 01/01/2009, na minha antiga "Cidade dos Sonhos")

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A infecção da tristeza

Hoje eu vi:
a tristeza infecciona.
Põe seu bacilo no corpo e na mente...
E suga força, vontade, beleza...
Até que olhes no espelho e, surpresa
Veja a ti no que é ela.

Ser mergulhado no vazio
Túnel negro de dissabores
Atração irresistível do olhar
onde cada movimento externo
dá em aborrecimento interno
E em cada gesto há uma crosta
posta em rostos e corpos...
a refazer o solitário percurso do esquecimento.

Absurda caveira ambulante, de
cadáver vivo que procria (ou não)
à força de seres sós
que, pálidos e tristes,
em belos apartamentos
dançam o tango da vida.
como  Requiem da morte

Estou aqui, ó vil companhia!
Tua cara hoje é outra
Mas sob tua carne louca
Enxergo a vida pulsando
assim mesmo:
pulsando.


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O Limbo

Não há nada:
exceto vultos na bruma verde,
vivendo espera cansada.
Aqui não há filmes
Nem livros
Nem papos
Nem Sol.
Não há amor nem ódio
- há mortos, mas não a Morte.
Desaparece a Vista
Mas não se dorme.
Não há sono,
mas há fome.
Come-se: mas não se dorme.

Traído pela luz (a fornicar com a bruma)
O Tempo matou-se.
E o relógio espanca, implacável
ouvidos zumbis.


segunda-feira, 3 de junho de 2013

Amorzinho...

Antes da sombra estúpida
a Luz Gloriosa
Antes da chama fugaz
O amor contínuo.
Antes da desolada relva
Leito de folhas brancas
Antes da incerteza grosseira
Um amor Masculino.
Antes de uma desordem nova...
Uma ordem antiga...
Antes do Lixo
Pixo:
Sua letra só...
No muro do Amor...
E da Consolação.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Veneno Antiausteridade

* Minha declaração de amor a Paul Auster e suas "Loucuras do Brooklyn" *

Obs: amor = alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior.

Paul Auster, foto n(d)o Globe Times.
Mistério. Para tremer - e ao fundo, uma "Cidade de Vidro" - foto do WGBH News

"I WAS looking for a quiet place to die. Someone recommended Brooklyn, and so the next morning I traveled down there" (p.1) ["Eu procurava por um lugar quieto pra morrer. Alguém recomendou o Brooklyn, e então na manhã seguinte eu viajei lá pra baixo"]. Assim começam "The Brooklyn Follies" (tradução aqui), narrado e protagonizado por Nathan, um corretor de seguros aposentado que rumina a concreta, recente e dura luta contra um câncer de pulmão.
Divorciado, sem amigos próximos, já de início tretado com a única filha, mas com alguma grana para se manter; a viva imagem de um sessentão "fracassado". Para onde ir, quando o mundo parece ter aberto mão de ti - e tu do mundo?
Não ouvirás uma voz consoladora atrás de uma sarça. Não terás otimismo nenhum. A m. em que o anti-herói começa o livro não chega a ser eliminada "na Real", como diria Lacan (devidamente adaptado à língua dos meus alunos). Mas Nathan é a encarnação escrita de um Paul Auster supreendentemente bem-humorado.
Humor negro, é claro, mas qual outro humor é possível em nossos tempos? Esperando uma história deprês de lamúrias sobre a finitude, estouramos de rir já na segunda página. Rachel diz a seu pai que esboce novo projeto de vida -  conselho pra-lá de razoável  - e o que lemos?
"I explained that I was probably going to be dead before the year was out, and I didn´t give a flying fuck about projects." (p.2, grifo meu) ["Eu expliquei que provavelmente estaria morto antes do fim do ano, e eu não dava uma mísera trepada para projetos"]
O.k. Não dá para traduzir. "Flying fuck" (perde-se a aliteração de "F F"). Talvez "tímida trepada".
Quase sem descanso, vem a gargalhada da página seguinte: "To hear Rachel tell it, I wasn´t much in the parent department either" (p.3, grifo meu) ["Pelo que a Rachel dizia, eu não era muita coisa no departamento de pais também"]. Imaginei o antiaustero velhinho atrás da mesa em uma sala com divisórias, num desses sufocantes escritórios terroristas (ops: tayloristas), com uma furada apólice de seguro para filhos, encarando a própria filha desfeita em prantos e reclamando seu passado de volta.

O livro está repleto dessas saborosas expressõezinhas luminosas que devem causar enxaqueca nos tradutores. Dir-se-ia uma espécie de Woody Allen mais profundo (exceto pelo Allen mais próximo de Bergman, como em "Crimes e Pecados", "Interiores", "A outra", "A rosa púrpura do Cairo"), e também mais chulo, com termos que colam na sua memória e das suas sinapses fazem casas, como se sempre tivessem estado lá.

Vejam os "Rascals believe in life" [canalhas crêem na vida], "everyone was subject to black moods", "Dombowski kicked the bucket three years ago. He was ninety-one, and he died of a stroke" (p.55), "intellectuals suck, Nathan. They´re the most boring people in the world" (p.93), "he´d always had the hots for Edith" (114), "every idiot got his turf to defend" (188), "I find it a perfect book for an aging fart like me" (192), "I´m not even sure he gives a rat´s ass about religion" (p.263), "our smart, energetic, wise-cracking child had turned herself into a royal pain in the ass" (283).

Se a voz popular orienta-nos que há sempre um chinelo velho para um pé inchado, Nathan encontrou o seu logo no início da história. Ele tromba Tom, seu amado sobrinho, que não via há anos,  atendendo ao balcão em um sebo. O.k., um ótimo sebo. Mas foi decepcionante para o tio Nat, que tinha grande admiração por aquele ex-jovem estudioso de literatura, com a mente vivaz que o fascinara com a sua ideia de que desejava escrever: "A study of the inner refuge, a map of the place a man goes to when life in the real world is no longer possible" (p.15). Ou, traçando um paralelo entre Edgar Allan Poe e Henry Thoreau: "As a place to read, write, and think. It´s a vault of contemplation, a noiseless sanctuary where the soul can at last find a measure of peace." (p.16)["É um cofre de contemplação, um quieto santuário onde a alma pode, por fim, encontrar uma quota de paz"]. E desse mundo desdobra-se a utopia austeriana, não de uma comuna, mas de uma comunidade.
Tom é um "fracasso escolar" do doutorado. E, sob alguns aspectos, lembrei-me de mim mesma no doutorado, às sextas-feiras, quando rolava a tela do PC com aquele indescritível sentimento de autodesapontamento, após cada semana de trabalho duro. Tom é o fantasma de todos os que decidem - ou são levados a - escrever uma tese, e por cobrir essa zona silente da vida de tantos, já é um personagem inesquecível.
Para encerrar, citação que me encoraja a continuar tentando o mundo da escrita:
"There were no rules when it came to writing, he said. Take a close look at the lives of poets and novelists, and what you wound up with was unalloyed chaos, an infinite jube of exceptions. Take a close look at the lives of poets and novelists, and what you wound up with was unalloyed chaos, an infinite jumble of exceptions. That was because writing was a disease, Tom continued, what you might call an infection or influenza of the spirit, and therefore it could strike anyone at any time. The young and the old, the strong and the weak, the drunk and the sober, the sane and the insane. Scan the roster of the giants and semi-giants, and you would discover writers who embraced every sexual proclivity, every political bent, and every human attribute - from the loftiest idealism to the most insidious corruption." ["Não havia regras no que se referia à escrita, ele disse. Olhe de perto as vidas de poetas e novelistas, e você se choca com o puro caos, a infinita galeria de exceções. Isso porque escrever é uma doença, continuou Tom, o que você pode chamar uma infecção ou gripe do espírito, e portanto poderia atacar qualquer um a qualquer momento. O jovem e o velho, o forte e o fraco, o bêbado e o sóbrio, o são e o insano. Vasculhe a lista de gigantes e semi-gigantes, e você descobriria escritores que abraçaram toda orientação sexual, toda tendência política, todo atributo humano - do mais elevado idealismo à mais insidiosa corrupção"] (Paul Auster, 'The Brooklin Folllies", London: Faber and Faber, p.148)
Um louvor à aceitação. Ao pegar o que vem, e, no caso de Auster, apanhar uma mosca para sair voando - ou seja, acompanhar Nathan em seu vôo na direção da finitude mais interessante - e mais completa - que já se viu. A fly for flying.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Sobre guerra e reconhecimento

UMA guerra, ao que parece, só é possível quando se apaga a individualidade do inimigo, convertido em imagem do mais puro Mal. Desde que, em 1830, surgiu a ideia de nação, tem sido assim. Sábio Voltaire! Já percebeu que ela traz muito  narcisismo: trata-se de catapulta imaterial pelo qual todos os cidadãos de certo país jogam lama nos seus vizinhos.
"Full Metal Jacket (Nascido para Matar, direção de Stanley Kubrick)" mostra soldados que nem sequer acreditam que os gooks (vietnamitas) mereçam ser mortos. A imagem do soldado americano ao lado do inimigo morto, vestido de marine, é melancólica. E ele diz, chocado consigo mesmo: "Não poderia ter sido meu amigo? E o aniquilei... talvez quando voltarmos para casa não haverá mais guerras, pois não haverá quem valha a pena matar".
Isso me lembrou um trecho do conto "Deutsches Requiem", do Jorge Luis Borges. Nesse conto, mesclam-se melancolia e violência na voz de um narrador schopenhaueriano que observa seu mundo marchar para o Nada sem  hesitação. Ele diz:
"Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para as outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja no inferno.
Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não." (Borges, Jorge Luis. “Deutsches Requiem”. In: O Aleph. São Paulo: Globo, 2001, p. 96)  
***
Não há equilíbrio para o soldado americano. Seus inimigos? Todos os que se põem a atravessar um mito, a ideia de um mundo à imagem e semelhança da América, mas aquém dela na escala evolutiva (para ser irônica...), de modo a não lhe constituir ameaça. Como homens prostrados, eles aferram-se às possibilidades de prazer sem expor objeção. Sua própria individualidade, como a dos gooks, desaparece sob a farda. Revigorar o aceite de uma fé que se perde em meio aos destroços parece (e é) franco absurdo.

***
A guerra floresce na distância. Ao vizinho, permitem-se no máximo uns saques - como os pogroms. Por isso, Hitler tirou os judeus dos grandes centros, de sob os olhos do contribuinte alemão, antes de matá-los. Esquartejar o sujeito que se senta ao seu lado todos os dias, na hora do cafezinho, seria vilania incomensurável. Acho que é assim. 



quinta-feira, 4 de abril de 2013

melancolia (rascunho)


Sem filia
ou melodia:
o corpo sofria.
A mente?
Padecia.
Mas só de séria:
Melancolia.


Em mim, desconforto
Miséria e o desejo louco
de destruir o mundo
no qual não sofro pouco.



domingo, 31 de março de 2013

Gênero, polícia e espaço público: o mau uso das praças e parques em Goiânia

Criada na periferia de Bauru, São Paulo, o conceito de praça da minha adolescência reduzia-se à rodela de grama do Jd. Godoy, com seus bancos quebrados e um Sol impiedoso batendo no coco.
Mas, praça ou não praça, apropriávamo-nos da rua estendendo redes de vôlei que sempre se dava um jeito de emprestar. Talvez a proporção de garotos e garotas fosse de uns 60 para 40%, ou, no máximo, 70 para 30%.
Em São Paulo, capital, a coisa talvez fosse pior: perifa não tem nada, só camburão do IML com seus gritos de morte a romper as vielas. Na rica região do Parque da Água Branca, eu tinha que desviar de muitos ambulantes - o Parque estava se tornando uma espécie de shopping a céu aberto: nada de linhas retas para caminhada, e uma baita poluição sonora. Paradoxalmente, os velhinhos seresteiros que se reuniam ali com seus razoáveis violões tomaram um bilhete azul do Governo do Estado. Prédios da Assistência Social e da Agropecuária distribuíam-se ao longo do parque, que fechava cedo demais pela importância que tinha para os moradores da região. Veja mais aqui.
Em Goiânia os espaços públicos são maiores e melhores. Mas, diferente da Bauru da minha adolescência, há uma tremenda discriminação de gênero em sua ocupação. Se você vai a parques como Areião, dos Flamboyants ou dos Buritis, encontrará famílias, jovens em reuniões evangélicas, namorados (inclusive GLBTT) e mesmo pares ou grupos em passeios fotográficos. Próximos de bairros bem cotados, estes são parques para a classe privilegiada, embora muita gente humilde os frequentem - particularmente, os Buritis.
A coisa muda totalmente de figura na Praça Universitária ou no Parque do Botafogo. Ontem eu era a única pessoa do sexo feminino caminhando pelo Parque, com espaços de prática esportiva tomado por jovens em atitude agressiva - inclusive alguns motociclistas que buzinavam ao passar, totalmente indiferentes à necessária multiplicidade de uso do espaço. Poucos idosos transitavam ali.
Diferentemente dos demais, ali há uma quadra e um campo de futebol. A mensagem é clara: em Goiânia, esporte é coisa de macho. E essa brutalidade na ocupação do espaço revela-se também na produção de ruído alto, afugentando os que buscam contemplação.
Alguns diriam que é a própria atitude ostensiva dos grupinhos masculinos que as mulheres temem, razão para não se aproximarem. Mas não será necessária uma atitude afirmativa das mulheres? Por que as garotas estão presas em casa? Estaremos condenadas a ficar no recesso do lar, vendo programas de tevê em que os outros se divertem, enquanto nos entendiamos, nos deprimimos e engordamos? Ou a bater pernas em shoppings, espaço tão vazio, antidemocrático e emburrecedor quanto uma sala-de-estar com televisão e sem livros? Por que a única biblioteca pública de Goiânia tem um acervo que rivaliza, em  antiguidade, com a cidade, e em diversidade, com as livrarias evangélicas da Rua 4?!
Mas agora falo da Praça Universitária. Ali, quem mais perturba é a polícia - que tara ela tem pelos jovens frequentadores! Sem sombra de dúvida, é o espaço com mais policiamento de todos os que eu citei. Meu fado de andarilha insatisfeita completa-se com as inúteis sirenes que contribuem tanto para a poluição sonora do local. Cheguei a ver duas viaturas do choque rodando por ali simultaneamente, com o entusiasmo de quem iria reprimir a Al-Qaeda ou o Fernandinho Beira-mar. Garotos jogando bola nas imediações da Praça também são - falo como testemunha ocular - uma ameaça digna de atenção dessa instituição historicamente estúpida e repressora em nosso país.
Vi muitas vezes os policiais passarem uma descompostura nos garotos da Praça, quase sempre, nos de aparência humilde e pele mais escura. Mas a juventude resiste e continua por ali - particularmente, os skatistas, que devem ser alvo da polícia (embora não os brancos), pois o cheiro de maconha é frequente perto deles.
Provando a inefetividade da repressão, a praça virou o lugar mais pichado de todos os que eu mencionei neste post. Não mais um local em que seja agradável estar, e tampouco um espaço plural: é um espaço de tensão institucional. Lugar predominantemente frequentado por garotos, especialmente nos feriados, os quais também produzem uma poluição sonora considerável, participando de uma degradação do espaço público similar à que encontrei no rico Parque do Areião há alguns meses atrás.
Eu conto: ao tentar pedir a um grupelho de bêbados que churrasqueava ao lado de seu potente carrão, estacionado na pista de corrida[!], para desligar seu altíssimo CD Player, fui sumariamente xingada. Está claro que promoção de educação ambiental e cidadania não é tarefa para indivíduos isolados. Penso que esse episódio é emblemático da apropriação autoritária do espaço público: forçar estranhos a ouvir algo que eles não escolheram, desconsiderar por completo a possibilidade de prejudicar espécies do parque com lixo e ruído, organizar grupinhos com postura intimidatória para evitar a divisão do que, por direito, é de todos. Penso que algumas coisas precisam ser feitas:
1) Mais educação ambiental para todos - por que só guardas e polícia são vistos como interessantes? Por que não colocar agentes de educação ambiental ao invés de policiais nesses espaços?;
2) Ampliação da presença das mulheres nesses espaços, particularmente nos dedicados ao esporte - se necessário, com administração de horários exclusivos para elas, até que tal presença se consolide;
3) Construção de mais espaços de lazer e cultura, com a integração dos jovens, adultos e idosos na sua gestão.


quinta-feira, 14 de março de 2013

O Vingador da Sarjeta, ou Again, Cobain (Capítulo I - Contradições e Medicalizações)


04/03/2013
Notas pequenininhas sobre "Mais pesado que o céu", biografia de Charles Cross sobre Kurt Cobain

Capa da biografia de Kurt Cobain

Esse olhar incrivelmente terno, doce, contrasta com a do artista vagabundo que roubava estátuas em cemitérios. Nossa perspectiva sobre o líder do Nirvana muda drasticamente ao saber que, dadas as devidas proporções, os 27 anos de Kurt significaram uns 90 de uma pessoa qualquer - com um enorme bocado de sofrimento. Com muitas entrevistas, Charles Cross traça um biografia descontínua de Kurt, desde seus anos de perturbação mental e vida de tramp (dormiu no próprio carro durante muito tempo e, ao que tudo indica, nos seus últimos dias de vida). Você presencia imaginariamente uma escalada de dependência química que termina em tragédia; vivencia o sentimento de desamparo e intromissão do mundo exterior que nada, nem a heroína, acaba mitigando. “Ele era quieto” foi a descrição de Kurt que Cross ouviu com maior freqüência. E nesse ritmo, acabou sendo o Cristo da dependência química, que usurpou a pungente humanidade de sua história. 
Filho de Don, um pobre mecânico que gostava de esportes e era duro com seu filho – mas apenas antes do divórcio – e Wendy, a dona-de-casa que, inesperadamente, dá fim ao seu casamento convencional, sofreu as dores de não conseguir reparar as dores do divórcio. Sujeitos crentes no mito da ‘família estruturada’ diriam que o divórcio é um problema – mas, caros patriotas, mesmo os mais ardorosos defensores das tradições admitiriam que não são freqüentes os divórcios sanguinolentos como esse. No interior de um perpétuo conflito identitário, Kurt desenhava e compunha, em parte, para perturbar – desde a adolescência – e vomitar sua própria, indelével, terrível, perturbação. Kurt não foi simplesmente rejeitado; tal como o bebê sob o fio da espada de Salomão, ele literalmente dividiu-se em Kurt e seu alter-ego Kurdt (que no final, é só Kurt grafado errado, é o filho de Don e Wendy afirmando seu distanciamento com relação ao nome que lhe deram). O primeiro é depressivo, auto-isolado, auto-destrutivo, de baixa auto-estima. O segundo, é o punk que mostra o dedo para os compradores de Nevermind, na capa interna do disco. E que não tem pudor em buscar o estrelato - mas quer ter o estrelato para mostrar seus ideais punks.
Kurt foi sempre um sujeito contraditório: “ele dirigia como uma velhinha”, conta Kris Novoselic. Antes da heroína, tinha tanto medo de agulhas que nem mesmo fazia exame de sangue. Cross ilustra esse fato assistindo a cenas em filmes de família que o mostram brincando afetuosamente com a filha, com uma seringa ao fundo, pendurada no armário de escovas. Pobre, wasted, Kurt! Sua trajetória também coloca em questão a precariedade dos serviços de saúde mental nos Estados Unidos, pois é incrível que tenha atravessado tantos anos de sofrimento antes de poder pagar por auxílio. Registra-se que apenas um psicólogo o atendeu por muito pouco tempo, no período de separação, e nada mais.
À criança inquieta e criativa que criou um amigo imaginário aos dois anos de vida – Boddah, o destinatário de uma de suas cartas de suicídio – cedo se deu uma saída medicalizante:
“Quando Kurt estava na segunda série, seus pais e professora decidiram que sua incansável energia podia ter uma origem médica mais ampla. O pediatra de Kurt foi consultado e o corante alimentar vermelho foi retirado da sua dieta. Quando não houve melhora nenhuma, seus pais limitaram sua ingestão de açúcar. Finalmente o medido receitou Ritalin, que Kurt tomou por um período de três meses. ‘Ele era hiperativo’, lembrou Kim [irmã de Kurt]. ‘ Ficava saltando pelas paredes, principalmente se lhe fosse dado algum açúcar.’
Outros parentes sugerem que Kurt pode ter sofrido de deficiência de atenção por hiperatividade. Mari [tia materna] se lembrava de uma visita à casa dos Cobain em que encontrou Kurt correndo pelo bairro, batendo num tambor de parada e gritando a plenos pulmões. Mari entrou e perguntou a sua irmã: ‘Mas que diabo ele está fazendo?’. ‘Não sei’, foi a resposta de Wendy. ‘Não sei o que fazer para conseguir que ele pare – já tentei tudo.’ Na época, Wendy supunha que era o modo de Kurt queimar seu excesso de energia de menino.
A decisão de dar Ritalin a Kurt era, já em 1974, uma decisão controversa, com alguns cientistas argumentando que isto cria uma resposta pavloviana nas crianças e aumenta a probabilidade de comportamentos de dependência química mais tarde na vida; outros acreditam que se as crianças não recebem tratamento para hiperatividade, podem mais tarde se automedicar com drogas ilegais. Cada membro da família de Cobain tinha uma opinião diferente sobre o diagnóstico de Kurt e sobre se o breve curso de tratamento o ajudou ou prejudicou, mas, na opinião do próprio Kurt, tal como ele mais tarde contou para Courtney Love, a droga foi importante. Courtney, a quem o Ritalin também foi receitado na infância, disse que os dois frequentemente discutiam esta questão. “Quando você é criança é toma esta droga que o faz sentir-se desse jeito, para onde mais você vai se voltar quando for adulto?’, perguntou Courtney. ‘Era uma euforia quando você era criança – essa memória não vai ficar com você’?”. (Cross, Charles R. Mais pesado que o céu. São Paulo: Globo, 2013, p.36)
Em algumas de suas várias internações entre 1991 e 1994, Kurt saiu limpo. Mas era nítido que a desintoxicação não removia os problemas de fundo. Como descobriu Reginaldo Teixeira Mendonça em uma pesquisa com voluntários de variadas classes sociais, “o uso dessas drogas [psicoativas] tem, inicialmente, a finalidade de auxiliar nos confrontos emocionais, mas acaba impossibilitando o diálogo, fazendo com que os conflitos sejam ignorados – em vez de resolvidos. ‘As relações sociais são pautadas pelos medicamentos, e essa tendência pode ser produtora de um silêncio que impede a pessoa de encarar qualquer mudança em relação a sua vida’, afirma. Entre os homens, observou-se que essas drogas são usadas principalmente para superar os limites do corpo (dormir menos, trabalhar mais), na tentativa de se manterem como provedores da família. A pesquisa recebeu o Prêmio Nacional de Incentivo à Promoção do Uso Racional de Medicamentos de 2009, concedido pelo Ministério da Saúde.” (Viver Mente&Cérebro)
As dores, o sofrimento físico; a angústia, a divisão interna; a predileção por escatologia (era muito sensível a cheiros), excreções, sofrimentos, passam pelo seu maldito estômago de macho habituado a junk food (uma das sempre alegadas razões para o consumo de heroína), ou pelos seus braços que, pelo fim da vida, granjeavam abscessos. Kurt não apenas escreveu sobre vômitos, mas realizou o ato sem-número de vezes – com freqüência, o resultado vinha cheio de sangue. Como canta em uma de suas músicas mais admiráveis:
Things have never been so swell 

And I have never failed to feel

Pain
Pain
Pain

I would never bother you 

I would never promise to

I will never follow you 
I will never bother you 
Never say a word again 
I will crawl away for good

I will move away from here 
You won't be afraid of fear 
No thought was put into this
I always knew it would come to this 
Things have never been so swell 
And I have never failed to feel

Pain
Pain
Pain
You know you're right
You know you're right
You know you're right

Clip de "You Know You´re Right" - Youtube
Quantas coisas fantásticas ele fez em estado de pura fissão nuclear! Minutos antes de fazer o maior dos Acústicos MTV (bem, nem tão Acústico assim, afinal), ele estava literalmente estraçalhado, jogado no sofá com sintomas de abstinência (não sei se heroína é o psicotrópico ilegal que mais dá barato, mas estou convencida de que deve ser o que traz a pior abstinência), até que alguém lhe trouxe um benzodiazepínico para controlar isso. [...]

[continua algum dia!]

domingo, 10 de março de 2013

A Álvaro de Campos II

Entre noites insones
E raparigas inglesas
E escravos do mundo

Entre navios construídos
E consciência desterrada
De aldeão instruído
vicejam as angústias maiores.
E menores.

Não é que não tivesse sonhos,
desejos no ventre
Ou medo nas pernas
Mas nos sonhos, no desejo e no temor:
brotam larvas de consciência
futuras moscas de uma vontade dilacerada.

E de ti, herdo esse costume
De procurar em mim umas larvas...
Postas no tronco húmido de orgias cognitivas
Nas quais o amor é parasitose metafísica
E a morte, anseio inútil de noites eternas

domingo, 24 de fevereiro de 2013

!E os latinos levam!

***Este texto contém spoilers ***
Tenho um fraco pelas malditas séries. Pior que sardinha, quando adolescente entrava em qualquer enlatado, desde as "Sessões de Sábado" na Globo, até o "Chaves". Mas quanto ao Chaves, tudo bem, eu acho. 

Viúva de X-Files e Seinfeld, virei addicta em "Breaking Bad" (criada justamente por Vince Gilligan, um dos roteiristas eXcers), a série da AMC que gira em torno de Walter White. Walt é um professor de química com câncer, que começa a fabricar metanfetamina para deixar alguma herança à família. Walt não tem nada a perder, e no entanto, vê destruir-se a vida que ele julgava ser o tesouro pelo qual vivervale a pena. No pequeno laboratório do deserto em que Walt abre a série, correndo de cuecas pela primeira vez, ele é apenas um cook sem eira nem beira, acompanhado pelo fiel escudeiro, o tolo e junkie pobretão Jesse Pinkman, o vendedor que trabalha nas esquinas erradas. Essa oposição entre o 'gênio' e o 'tolo' é base da primeira temporada, mas vai se modificando de modo muito interessante nas seguintes. Humor, drama e ação se mesclam enquanto Walt "Breaks bad", ou seja, vira um sujeito do crime. E Jesse, solitário e infeliz, palmilha todos e mais alguns dos infernos éticos de um grupo social para o qual dor e drogas (legais, ilegais) se balanceiam como água e álcool.   

Do link: http://www.esquire.com/features/esquire-100/cranston1007

É difícil não nos identificarmos com Walt, que do estreito e repetitivo mundo intraescolar consegue se sair muito bem tanto entre traficantes violentos e brainless - como Tuco Salamanca - e o manager Gus Fring, sujeito tranquilo, bem-educado, rico e cheio dos 'discurso corporativo', mano. É fato: quase todos nós poderíamos percorrer o Walt Way of Life, caminho que vai de um desejo legítimo por saúde para si e segurança para a família a uma disputa de poder orgulhosa na qual o fundamental é ser mais esperto que o oponente; um verdadeiro "Velho Oeste" no qual a violência continua sendo protagonista (a escolha de Albuquerque, Novo México, como a cidade-sede da série é bem significativa). Nesse caminho, já disse Vince Gilligan, a ideia é mostrar o estranhamento entre a ação e suas consequências - o modo como cada  'legítimo' ato de sobrevivência de Walt acaba desencadeando horrores nunca antes imaginados. 

À parte Jesse, figuras assustadoras de dependentes químicos com o rosto escarificado transitam pela série, mas Walt não lhes dedica nenhum frase, nenhum pensamento: "worthless junkies", é o que todos dizem, inteiramente à mercê do "produto" White e outros. Não são as substâncias de alto poder aditivo a garantia de uma freguesia cativa? White fabrica a morte, mas ela lhe garante a vida. Walt pratica regularmente o autoengano, no qual aparece sempre como vítima das circunstâncias; Jesse, elétron que circula no orbital White, e ele próprio, gênio cujo trabalho gira um capital gigantesco. Na interpretação magistral de Bryan Cranston, Walt começa a série inseguro. Olhos baixos, voz trêmula, recorrentes cenas correndo de cuecas sem rumo certo (Walt de cuecas - cuecas mesmo, brancas e sem graça, nem sungas nem boxers - é símbolo que remete à sua desorientação e fragilidade), e vai aplicando sua esperta careca química a bolar uma enorme diversidade de astuciosas armadilhas para seus inimigos. No grande trabalho vocal do ator, Walt começa a falar forte e grosso - olhar reto, postura desafiadora. Com direito a cenas engraçadíssimas como essa foto ao lado do trailer, no 1º Episódio. Como diz Hank no mesmo episódio, Walt segura uma arma como Keith Richards segura um copo de leite.

***
Algo que me incomoda desde o início da série é a representação dos hispânicos - em particular, os do cartel com que Walt guerreia. Hoje, vimos um episódio da 4a temporada na qual Gus leva Jesse para fabricar speed para o cartel. Esse junkie americano que encarna a estupidez no seriado tromba os químicos titulados do cartel e os vence. Também Walt leva a melhor sobre todos os latinos que encontra. Gus representa o bem-sucedido 'empresário' - estrangeiro, mas totalmente integrado ao mundo do Tio Sam - conseguindo sobrepujar o cartel mesmo com golpes toscos. Entre personagens absurdos brandindo machados e químicos tontos que escutam as ofensas de Jesse sem reação, os latinos são de uma estupidez absurda, estereotipada, de uma maldade e de uma violência sempre grotescas. Espanta que, nos nossos tempos, ainda se consinta com essa Doutrina Monroe via enlatados, que, como eu já disse, desde cedo me acostumaram ao seu ritmo. A moral da história é que os latinos sempre levam.

Sobre isso, agora um pouco triste, só consigo me lembrar da frase de Emiliano Zapata (que falou em espanhol, mas aqui vai): "Pobre México! Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos". Infelizmente, aqui estão as séries que nos aproximam do Tio Sam. E eu talvez precise deixar de ser uma sardinha (mas acho que só depois do fim de Breaking Bad, falow?).


sábado, 16 de fevereiro de 2013

Carta a J.L.B.



"Às vezes, não somos fáceis e sabemos disso. Por que teria de ser diferente? Por mais que o tempo passe, não há perspectiva de que uma nódoa na carne deixe de ser uma nódoa na carne. Quisera saber de ti, quanto tempo mais resta para que eu pudesse deixar um presente para você, algo realmente para carregar vida afora; algo que dure e não desbote com o tempo e as minhas dificuldades, mas fico aqui, sentada, sem poder me mexer com algo que não seja distração e desatenção para o mundo fora deste lugar, deste quarto, do elevador e da garagem, e o pequeno apêndice que há fora disso, aquele que vai entre o trabalho e a praça de todos os dias.
Uma coisa que você me ensinou a perceber é a perenidade em mim. Se alguém irascível pode tornar-se um pouco mais controlado, é que a coisa era só incidental, casual, não necessária. Mas se alguma insociabilidade se associa a um pouco de auto-estima; se à pessoa é possível evitar ser irascível, mas não deixa de ser cheia de si, então, é que ou a relação ou a pessoa são irrecuperáveis – e esse defeito não é defeito, é algo que te constitui, é uma perna, um pulmão, um coração, mas está em algum lugar menos palpável, essa fortaleza em ruínas que é a minha mente.
E o mundo lá fora, aquele depois que o carro sai da garagem, que o porteiro fecha o acesso, e as paisagens começam lentamente a se modificar, está aqui dentro, e talvez seja só inútil perder o sono para imaginar novos meios de isolar-se, isolar-se, isolar-se... quando teremos de tirar o lixo ao menos uma vez por semana.
Acho que ser, de algum jeito, um objeto do nosso tempo é a verdadeira solidão". (B. Viterbo)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Paralisia (miniconto)

Mudança de cômodo: inútil. Há anos sentira sua lenta aproximação e agora ele estava ali. Éramos presa e predador. Fora isso, o túnel negro da noite infinita.
Ruído de tranca se abrindo, o predador saía. Minutos depois, voltava. Teria feito outra presa nesse meio tempo? Se não me encolhesse no mais absoluto silêncio e escuridão, ele me deixaria um golpe, ou um cagalhão pelo caminho, apenas para depositar sua merda no território que era o seu. Talvez uma blasfêmia, era isso, se crentes nós fôssemos: mas não acreditávamos em nada: ele na força, e eu no ódio dele, se já nem tanto na possibilidade de escapar, ou na (triste) alegria que  vem de sabermos não ser ainda a nossa hora. Mas era, ó Santo Vácuo: era a minha hora, e nem mil lambaris frente a um tubarão temeriam tanto.
Afora aqueles golpes, apitava forte a noite escura, apitava certo ultra-som, mais agudo do que todos os agudos: era o nada (escapar? Para um lugar que não fosse o túnel negro da noite infinita? Isso era tão grande quanto o deus que já tinha se ido). Pior que o Ser é o Nada; se o predador não conseguir se alimentar devidamente e a presa não pudesse oferecer-lhe sua carne – a fome sempre virá, pensei, e eu estarei por aqui, e gritarei e ninguém há de perceber meus gritos, não tem caçador, nem Salvador: só Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho, Marion e Norman Bates, Jesus e Judas, Nedda e Canio, 6 milhões de judeus e Hitler. Ali sempre estará você. E ali também os seus ossos, que são da cor dos meus.
Não sabia se éramos macho ou fêmea. De fato, não importava, pois eram apenas carnes; uma pronta a devorar, outra, a ser devorada. O andar; pesado; o rosto, velado. Cabelos nas patas, talvez grudados no sangue das vítimas. A dor da vida, o som da morte. E o espaço sideral ainda mais adverso, com mais vácuo que planetas onde se pudesse morar e presas que se pudesse comer. Era essa a hora em que o Deus Ex Machina sairia de seu andaime com a varinha salvadora (ou seria a fada?). Mas o predador não gostava de filmes: de fato, na sua ignorância animal, não vira nenhum. Às vezes parecia esperar, pacientemente, a conversão de sua presa, que ela o seguisse nas peregrinações (um cúmplice, um lambe-botas, um assecla, um filhote de predador, talvez). Mas eu não ia.
E nem vinha. 

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